Em defesa da chamada “intolerância”

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Com uma frequência crescente, diversas intervenções públicas no âmbito da comunicação política são classificadas, de imediato, como práticas de “discurso de ódio” e subsumíveis ao cometimento do crime previsto no artigo 240º do Código Penal.

A jurisprudência conhecida dos nossos Tribunais, ainda escassa sobre esse tema, não nos permite recortar com rigor quais os comportamentos, que, na verdade, deverão ser punidos a esse título.

Na atualidade portuguesa, a situação assume especial interesse, quando estão em causa quaisquer tipos de discriminação, individual ou coletiva, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem.

Antes de prosseguir, importa referir, desde, já que o “discurso de ódio” com efeitos geradores de violência social haverá sempre de ter enquadramento criminal.

As dúvidas surgem, unicamente, quando o discurso político aborda temas de inserção social e de convivência comunitária relativos a minorias ou pessoas individualmente identificadas, integrantes dessas mesmas minorias, com uma apreciação negativa.

Entramos assim, diretamente, na difícil, discutível e fraturante fronteira entre os limites da liberdade de expressão e o chamado “discurso de ódio” em contexto de discurso político.

A liberdade de expressão surge no nosso ordenamento jurídico com uma eficaz e rigorosa tutela constitucional, começando o diploma fundamental, logo no seu artigo 2º, por referir que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais (…), reforçando no seu artigo 37º que todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações e que o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

A exclusão constitucional da possibilidade de qualquer tipo de limitação ou censura é tão vincado que se exclui, obviamente, o “delito de opinião” mesmo quando se trate de opiniões que se traduzam em ideologias ou posições anticonstitucionais. (Repare-se, a titulo de exemplo, que o art. 46° nº 4 da constituição proíbe apenas as organizações de ideologia fascista e racista e não a expressão individual de opiniões fascistas ou racistas).

Contudo, aponta o legislador constitucional a possibilidade de o exercício do direito de expressão poder envolver responsabilidade criminal/contraordenacional, dizendo, no artigo 37º nº 3 desse diploma, e transcreve-se: “As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.”

Ora, nos juízos sobre as limitações à liberdade de expressão, encontrar-se-ão sempre manifestações de uma profunda divisão filosófica/política entre aqueles que prezam a liberdade individual e aqueles para quem os valores da comunidade devem prevalecer sempre, ou então entre os que acreditam em direitos humanos universais e os que insistem em que os valores que

enformam as diferentes culturas e tradições minoritárias se encontram acima de qualquer crítica ou juízo.

Teremos certamente que distinguir, neste quadro jurídico, quando se apreciem os limites da liberdade de expressão, se o chamado “discurso de ódio”, no seio de um discurso politico, é um mal em si mesmo, com contornos éticos desadequados, ou não, ao sentimento comunitário, e que nas democracias ocidentais haverá sempre de ser sufragado pelo voto popular, ou se, pelo contrário, esse “discurso de ódio” acarreta um dano concreto, um dano para além do discurso com manifesto prejuízo para o grupo visado ou para o indivíduo integrante desse mesmo grupo minoritário.

Nesta apreciação, importa ter a consciência clara que se assiste a uma “híper-subjetivação” dos direitos morais das comunidades ou grupos minoritários integrantes da sociedade, a que não é alheio o conhecido movimento “WOKE”, caraterizado pela extrema sensibilidade à ofensa/opinião seja ela dirigida a um só individuo que se identifique com essa comunidade ou grupo, seja ela dirigida a toda a comunidade ou grupo minoritário, o que pode levar a descurar – erradamente em minha opinião- a necessidade de procurar no comportamento do hipotético agente do crime a sua verdadeira intenção e identificar, em concreto, os danos que a sua conduta originou.

Isso mesmo referiu o Supremo Tribunal de Justiça, num seu acórdão, já com alguns anos, proferido em 5 de julho de 2012, onde defendeu, para que o comportamento fosse crime, “a exigência, no sentido de a negação difamatória ou injuriosa ser com a intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa, ou de a encorajar, sendo necessário que o agente atue com intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa ou de a encorajar (dolo específico).”

A necessidade da verificação de um dano na comunidade ou no indivíduo membro dessa comunidade minoritária, como causa direta de um discurso político, ou melhor, daquele concreto discurso alusivo, acaba por ser imprescindível para que se possa justificar o fim da punição criminal, razão pela qual, por vezes, o escrutínio do discurso politico por parte de organizações não governamentais pode levar a um grau de exigência de moralidade subjetiva dissociada dos eventuais prejuízos concretos da comunidade visada.

Terá todo o interesse, relembrar aqui, o que escreveu o Professor Rafael Alácer Guirao, titular da cadeira de Direito Penal na Universidade Rey Juan Carlos (Espanha), no seu artigo de opinião intitulado ““Discurso Del Odio y Discurso Politico – En defensa da la libertad do los intolerantes”, e que resume o que entendemos sobre a matéria: “Sem embargo, uma sociedade estável em que não existam situações estruturais de desequilíbrio ou desigualdade entre distintos coletivos sociais, possuirá mecanismos suficientes para oferecer resistência ao discurso de ódio, pelo que não está justificado o recurso a um instrumento de última ratio como é a pena. Máxime em democracias que se definem como não militantes, as que lhes é inerente a tolerância frente à intolerância”

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