Elogio da arte

Elogio da arte

Brian Eno escreveu um livro sobre aquilo que a arte é, faz e nos faz fazer — em nome da nossa civilização.
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O triunfo de uma cultura televisiva enraizada na “novelização” da política tem promovido (e, mais do que isso, consolidado) um jornalismo superficial, tendencialmente moralista, que reduz as manifestações artísticas a banais ferramentas de alguma “mensagem”.

Nesse universo mediático feito de imagens aceleradas e ideias maniqueístas, o jornalista, agora vestido de “especialista”, funciona como promotor da formatação da própria criação artística: cada filme, livro, música ou pintura apenas serviria para “ilustrar” alguma urgência sancionada pelo politicamente correto. A arte deixou de ser encarada e vivida como um acontecimento particular que nos convoca para uma experiência única e insubstituível, ficando reduzida a uma coleção de “sermões” que nos ajudam a permanecer na crista da onda mediática. No limite, tentarão convencer-nos que Persona (1966), de Ingmar Bergman, não é uma genial exploração das fronteiras emocionais e humanas do próprio cinema, mas apenas um panfleto que antecipa as legítimas lutas do movimento #MeToo...

Decididamente, o inglês Brian Eno não pertence a esse universo. De tal modo que acaba de publicar um insólito livrinho de pouco mais de uma centena de páginas — What art does (ed. Faber & Faber, Londres, 2025) —, tanto mais insólito quanto se apresenta com uma garbosa capa dura, à maneira de um grande álbum de pintura. Trata-se, em qualquer caso, de uma edição profusamente ilustrada, com desenhos da neerlandesa Bette A., também romancista e professora de arte.

Seguindo a proposta do título, podemos perguntar “o que faz a arte”. Aliás, não se trata de perguntar, não há ponto de interrogação: o título existe como o reconhecimento de que a arte faz alguma coisa, ou melhor alguma coisa acontece na arte e, em cada um de nós, através da arte. Daí, sem dúvida, a humildade, não apenas descritiva, mas prospetiva, do subtítulo: “Uma teoria inacabada”.

Se a teoria não vai nem pretende chegar a um fim, pelo menos sabemos ou podemos saber por onde começar. Ora, como recorda Brian Eno, há coisas que fazemos, que não podemos deixar de fazer, para nos mantermos vivos. Exemplos? “Comer alimentos, beber líquidos, usar roupas, ganhar dinheiro, comunicarmos uns com os outros.” Mas há também coisas que fazemos, mesmo não sendo compelidos a fazê-las: “compor poemas, arranjar flores, misturar cores, dançar, tocar bateria...”

Ou ainda: um objecto artístico é “algo que procura despertar alguns sentimentos” (e talvez que, pelo menos neste caso, a palavra “sentimentos” não esgote a pluralidade do original “feelings”). O que nos abre muitas portas para aquilo a que poderemos dar o nome de vida emocional. A esse propósito, Brian Eno cita algumas palavras concisas de Mark Solms, neuropsicólogo sul africano: “As emoções desempenham um papel fundamental na sobrevivência.”

O livro evolui como uma antologia de muitas perguntas e algumas respostas, pensamentos, desenhos, frases breves que têm qualquer coisa de panfletos emocionais. Mais um exemplo: “A arte é o sítio onde partilhamos sonhos (e pesadelos)”. Ou ainda: Art shepherds change, para o qual proponho a tradução muito livre de “A arte é como um pastor de mudança”.

As propostas de reflexão de Brian Eno, não sendo separáveis de outros dos seus escritos, pertencem também ao universo imenso e fascinante em que existe a sua música. E escusado será lembrar que, além de obras emblemáticas como Another Green World (1975) ou Lux (2012), os seus caminhos musicais envolvem a produção de álbuns de artistas como David Bowie, Talking Heads, U2 ou os portugueses The Gift (no magnífico Altar, lançado em 2017). Acima de tudo, há nele a consciência prática e pedagógica de um mestre (pastor, por que não?) que resiste à instrumentalização mediática da arte e dos artistas. Ou seja: "A civilização é a imaginação partilhada.”

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