Elevador da Glória. Um descarrilamento de responsabilidades

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O descarrilamento causou a morte a 16 pessoas e 23 feridos.
O descarrilamento causou a morte a 16 pessoas e 23 feridos.Foto: Gerardo Santos

O acidente do elevador da Glória ficará na memória como uma das maiores tragédias em Lisboa. O descarrilamento que causou dezenas de mortos e feridos não foi apenas o colapso de um sistema centenário: foi também o retrato de um descarrilamento mais profundo, o das responsabilidades de quem devia garantir a segurança.

As primeiras conclusões técnicas ajudam a compreender o que aconteceu. O cabo que unia as duas cabinas rompeu-se no ponto de fixação da cabina do elevador, poucos segundos após o arranque. A inspeção visual de rotina, realizada na manhã do acidente, não detetara qualquer anomalia. O plano de manutenção estava em dia, o cabo tinha ainda 263 dias de vida útil previstos, mas a falha ocorreu numa zona não acessível sem desmontagem. O guarda-freio acionou os travões pneumáticos e manuais, mas estes não foram suficientes para sustentar a cabina em queda, dependente do contrapeso do cabo.

É uma sequência dramática que levanta dúvidas sobre a robustez das normas em vigor. O Gabinete de Investigação de Acidentes Aéreos e Ferroviários (GPIAAF) confirmou, no seu primeiro relatório publicado no sábado, que o elevador da Glória não está sob a alçada do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, e desconhece se existe uma entidade pública claramente responsável pela sua supervisão. A investigação admite não ter, nesta data, informação fidedigna sobre o enquadramento legal aplicável. Apenas se sabe que, de quatro em quatro anos, uma entidade acreditada contratada pela Carris inspeciona o equipamento nas grandes reparações.

Ou seja, um transporte público classificado como monumento nacional, usado diariamente por milhares de pessoas, funcionava sem uma cadeia clara de fiscalização independente. A manutenção era assegurada por uma empresa contratada e a supervisão limitava-se a verificações de quatro em quatro anos promovidas pelo próprio operador. Este vazio é o primeiro descarrilamento de responsabilidades.

A quem cabe, então, responder por esta ausência de supervisão? A responsabilidade reparte-se em três níveis. No plano legislativo, sucessivos governos e Assembleias da República omitiram a clarificação do enquadramento legal destes ascensores históricos, deixando-os fora da fiscalização regular. No plano administrativo, entidades como o IMT ou a Autoridade Nacional de Segurança Ferroviária conheciam a existência destes sistemas mas não reclamaram competência nem propuseram um regime próprio. No plano municipal, a Carris e a Câmara aceitaram esta realidade, assegurando contratos de manutenção sem questionar a falta de auditoria independente.

Há ainda a dimensão da própria gestão. Desde 2007 que a Carris deixou de realizar a manutenção diretamente com meios próprios, optando por empresas externas. A decisão foi justificada por razões técnicas - a necessidade de conhecimento especializado para sistemas centenários - mas também por motivos de reorganização interna e de custos. Em 2022, a MNTC assumiu o contrato por concurso público, num valor próximo de um milhão de euros. À luz da tragédia, coloca-se agora a questão: foram os contratos e planos de manutenção adequados à utilização intensiva de um equipamento que passou a transportar milhões de passageiros por ano?

O Ministério Público conduz a investigação criminal. O GPIAAF apura as causas técnicas e emitirá recomendações. Politicamente, a Câmara anunciou uma auditoria externa, e o vice-presidente com o pelouro da mobilidade, Anacoreta Correia, assumiu responsabilidades diretas na gestão destes sistemas. Mas o essencial permanece em aberto: clarificar onde falhou o Estado, a regulação e a gestão municipal.

Mesmo que o presidente da Câmara, Carlos Moedas, seja o o rosto político das decisões de gestão da cidade, não será ainda momento de apontar culpados individuais. É, porém, inegável que houve uma falha sistémica. O elevador descarrilou, mas também descarrilou a rede de responsabilidades que deveria prevenir a tragédia. Sem enquadramento legal claro, sem fiscalização independente e com regras de manutenção que não previam a inspeção do ponto crítico onde a falha ocorreu, criou-se um cenário de risco que se revelou fatal.

O país deve agora responder com rigor e transparência. Importa apurar factos, mas sobretudo corrigir o vazio legal e administrativo que este desastre revelou. É urgente clarificar quem supervisiona, com que meios e com que regularidade, e assegurar que sistemas centenários recebem inspeções independentes regulares. É também essencial que a investigação criminal não deixe pedra por levantar sobre eventuais responsabilidades de gestão negligente.

Só assim será possível restaurar a confiança dos cidadãos e evitar que um novo descarrilamento - técnico e institucional - volte a ensombrar Lisboa.

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