E sobre o outro 25 de novembro, há consenso?
O debate político gira, por estes dias, à volta da legitimidade para se comemorar o 25 de Novembro de 1975. É certo que a celebração vai mesmo acontecer amanhã, no Parlamento, e contará com honras militares, discursos do Presidente da República, da Assembleia da República e dos partidos políticos e outros momentos próprios de uma sessão solene.
É provável (e compreensível) que o único 25 de Novembro que lhe venha à cabeça seja precisamente este, o da política. Mas há um outro que é o da vida de todos os dias, já antes de 1975 e que seguramente ficará muito depois do nosso tempo: o 25 de novembro instituído pela Assembleia-Geral das Nações Unidas através da Resolução 54/134 como o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres.
Esta é a realidade e a vivência de milhares de cidadãs portuguesas, cujo preço é pago diariamente pelo futuro que lhes é roubado, pelas suas famílias e pela dignidade que não têm.
Este ano, a data casa com o número avassalador de homicídios em Portugal: foram já 25 as mulheres assassinadas em 2024, desde o dia 1 de janeiro até dia 15 de novembro. Segundo o relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR, 20 das 25 mortes correspondem a casos de femicídio, ou seja, crimes motivados por violência específica em relação às mulheres - um aumento de 33% em relação aos casos de femicídio de 2023.
Em metade dos casos, diz o mesmo relatório, já havia violência prévia conhecida das pessoas mais próximas. Os casos de 6 mulheres já tinham sido mesmo identificados pelas autoridades, sendo que em 3 deles havia também registo formal de ameaças de morte.
Mais: 3 destes agressores tinham já um histórico de crimes, que incluíam violência doméstica. Se havia registo, havia possibilidade de prevenir.
A pergunta repete-se ano após ano: onde é que o Estado está a falhar? Há 24 anos que a violência doméstica é crime público, ou seja, para que se inicie o processo criminal não é necessário que a vítima apresente queixa, bastando que a denúncia seja feita por uma pessoa conhecedora do crime.
Com esta mudança na tipificação do crime pretendeu-se definir que a violência doméstica é uma questão de todos, que não se restringe às pessoas envolvidas e que, por isso, a obrigação de denunciar é geral. Era quebrar a cultura do silêncio e da desresponsabilização do que se passava na casa dos outros, concentrada na célebre frase: “Entre marido e mulher não se mete a colher”.
O número de queixas aumentou, as campanhas de instituições portuguesas e europeias apelaram cada vez mais ao fim do crime e à movimentação da sociedade, alguns casos mediáticos ajudaram a tirar pudor ao tema. Mas mantiveram-se também as mortes que não foram evitadas porque alguém falhou no processo, mantêm-se as queixas de profissionais de segurança pouco preparados e com uma abordagem pouco cuidada na hora de atender a vítima, mantém-se uma disparidade entre os meios mais urbanos e com mais população e os meios mais pequenos, em que as pessoas que representam o Estado (nas esquadras policiais ou nos centros de saúde, espaços propícios a que a confissão aconteça ou onde é possível identificar marcas físicas e emocionais de violência doméstica) são muitas vezes familiares, amigos ou conhecidos do casal ou da família mais abrangente, levando à vergonha da denúncia, ao terror da descoberta e à antecipação da descredibilização.
A eficácia do Estado não pode depender destes critérios subjetivos. O Estado tem de fazer mais. Tem de ter uma abordagem personalizada para as diferentes realidades do mesmo país. Tem de passar a pente fino a cronologia entre os primeiros registos e o fim trágico, e tem de criar soluções adaptadas. A violência não é igual em todos os cantos e tem formas cada vez mais apuradas, fruto da tecnologia e do seu uso perverso.
Neste 25 de novembro, o debate também deve ser este: que orgulho devemos ter no nosso país, na nossa História e no que estamos a construir, se continuarmos a ver mulheres a morrer por serem mulheres?