E que tal deixar de jantar fora na sexta-feira?

Publicado a
Atualizado a

Aqui há uns dias o CEO do Banco Santander Totta, Pedro Castro de Almeida, depois de apresentar à imprensa os lucros do banco em 2022 (568,5 milhões de euros), tentou limitar ao mínimo possível a possibilidade de aplicar a legislação que permite aos clientes renegociarem os seus empréstimos à habitação para fazerem frente ao aumento das taxas de juro.

Castro de Almeida defendeu que, passo a citar, "nas classes média e média-alta é verdade que há pessoas que se calhar estão a ter de tirar os filhos da escola particular, mas não são pessoas que estejam a passar fome. Quando falamos do aumento das prestações do crédito à habitação não estamos a falar das classes baixas, estamos a falar das classes média e média alta".

Noutro passo alegou, dirigindo-se aos jornalistas: "Podem circular por Lisboa, que estão aqui a jantar fora a uma sexta ou a um sábado de manhã. Podem circular pela rua e continuamos a ver as pessoas com um nível de padrão de consumo, na classe média e média alta, relativamente elevado".

Estão nestas frases considerados três sinais exteriores de "relativa" (para usar a expressão do gestor) riqueza que, segundo Castro de Almeida, distinguem quem pertence à classe média ou média alta dos que são despromovidos para as classes baixa e média baixa: ter filhos numa escola particular, jantar fora à sexta-feira e ter um empréstimo à habitação.

Acontece que temos cerca de um milhão e 250 mil pessoas em risco de pobreza extrema - será que muitos delas não têm, mesmo, um empréstimo à habitação às costas, cujo peso contribui para as empurrar para essa pobreza?... Gostava de apurar isso com rigor, mas adiante, passo à frente.

Imagino um cidadão qualquer que ande aflito por pagar a casa e vá ao Santander (por acaso, avise-se, este é o banco onde tenho conta, mas já paguei a casa onde moro) para tentar renegociar a sua taxa de esforço e reduzir, sei lá, a mensalidade de 400 euros para 350 euros em troca de ficar a pagar o empréstimo durante um período maior do que aquele que foi inicialmente contratado.

Será que, antes de decidir a alteração do pagamento do empréstimo, o gerente do banco pergunta ao cliente por hábitos de consumo "relativamente luxuosos"? Como este de ir ou não ir comer fora?...

E ir ao McDonalds conta como "relativo luxo", ou esse restaurante é para as classes média baixa ou baixa?

E se o cliente for uma vez por semana à cervejaria Portugália, mais cara, já não tem direito de renegociar a forma de pagar o empréstimo?

Será que o banco analisa o movimento de conta do seu cliente para saber os restaurantes que ele frequenta?

E verifica se há outros "relativos luxos" consumistas, como ter filhos num colégio?

E isso é legal?...

Eu até acho que ter os filhos na escola pública é, em quase todas as situações, a medida mais inteligente a tomar para a educação das crianças, mas o problema aqui é outro: Castro de Almeida (e imagino que quase todos os que mandam na banca) pensa que um cliente tem de mudar o projeto educativo que concebeu para o seu filho antes de tentar negociar com o Santander mais anos de pagamento do empréstimo da casa, de forma a reduzir a prestação mensal o que, provavelmente, até evitaria a mudança de escola do menor.

O padrão para este gestor, remunerado a milhão e meio de euros por ano, aceitar renegociar o pagamento dos empréstimos à habitação inclui, aparentemente, obrigar o cliente a passar primeiro por uma hierarquia de cortes de despesas draconianas que começa, nos exemplos dados, pela exclusão da ida ao restaurante e pela retirada dos filhos de uma escola particular. A seguir passará certamente por muitas outras etapas, até chegar ao nível que ele próprio define numa das frases que citei: "passar fome"...

Esta é uma terrível visão da sociedade e uma noção horrível do papel da banca na economia - ser eventualmente caridosa com os famintos, ser naturalmente impiedosa com todos os outros.

Deixo aqui uma conta simples para o leitor refletir: se o Santander tivesse abatido no ano passado 89 euros por mês na prestação da casa a todos os seus 265 mil clientes - valor que poderia recuperar alguns anos mais tarde, com juros - Castro de Almeida não teria apresentado um lucro de 568,5 milhões de euros, teria apresentado um lucro de "apenas" 284,2 milhões...

Jornalista

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt