E quando os casais se agridem mutuamente?

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O homem é o agressor e a mulher é a vítima? E quando ambos são agressores e vítimas ao mesmo tempo?

A violência nas relações de intimidade é uma realidade preocupante e inegável, com números assustadores que, ano após ano, exigem a toda a sociedade uma reflexão sobre medidas preventivas e de intervenção que possam ser mais eficazes na proteção das vítimas.

Os dados de 2020 indicam-nos que foram feitas 27 637 participações, 85% das quais contra cônjuge ou análogo. As vítimas são, na sua maioria, mulheres (75%) e os agressores, homens (81,4%). Olhando para os anos anteriores, concluímos que a assimetria em termos de género se mantém.

Mas será que estes números traduzem aquilo que se passa, de facto, em muitas famílias? Onde estão as estatísticas relativas aos casais que se agridem mutuamente e em que apenas um apresenta queixa?

No âmbito do trabalho pericial que desenvolvo, deparo-me demasiadas vezes com processos em que a mulher está identificada como vítima e o homem como agressor. Ao avaliar o caso de uma forma aprofundada, com entrevistas aos diversos elementos do sistema familiar e recolha de informação colateral, percebo que a violência era mútua. Ambos se agrediam física e/ou psicologicamente. E ambos o admitem.

Qual é a diferença? A mulher fez queixa ou pediu ajuda e o homem ficou calado. Noutros casos, pior. A mulher fez queixa ou pediu ajuda e o homem também. Mas foi na mulher que os serviços acreditaram.

As situações em que a violência é recíproca existem e não são residuais. Apenas não têm ainda a visibilidade que deviam ter.

Um dos impactos mais diretos da invisibilidade da violência mútua relaciona-se com o convívio com os filhos. Após uma queixa de violência doméstica, e ainda a decorrer a fase de inquérito, muitas crianças ficam desde logo impedidas de conviver com o pai, tido como agressor, permanecendo aos cuidados da mãe, tida como vítima. Existindo violência mútua, diríamos que a criança é afastada de um agressor e mantida com o outro.

É urgente refletir sobre esta realidade e definir medidas que permitam uma avaliação mais rigorosa destas situações logo numa fase inicial. Desconstruir barreiras e estereótipos que inibem os homens de pedir ajuda e alterar a forma enviesada como muitos serviços ainda olham para o homem e para a mulher. É um caminho que se tem feito, ainda que lentamente, e que importa continuar a fazer.

Porque quando homem e mulher se agridem um ao outro, as vítimas não são apenas eles mesmos, mas acima de tudo as crianças, que se veem envolvidas numa dinâmica totalmente disfuncional e não protetora.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

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