E, entretanto, no antigo país de Saddam vota-se...

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Houve eleições no Iraque e pouco se falou delas, o que significa que provavelmente se confirma o regresso a uma certa normalidade de um país que durante décadas esteve no centro das atenções, e pelas piores razões. Até é curioso que três notícias mais ou menos recentes, mas noutras geografias, relembrem de alguma forma essa época em que o Iraque preenchia os noticiários televisivos e ocupava muitas páginas dos jornais, fosse pela guerra contra o Irão que durou quase toda a década de 1980, fosse pela invasão do Kuwait em 1990, fosse pelo derrube de Saddam Hussein em 2003, fosse ainda pela força da Al-Qaeda e depois do Estado Islâmico aproveitando o caos inicial que se seguiu à intervenção militar americana.

Essas notícias mais ou menos ligadas ao passado iraquiano foram a visita à Casa Branca do líder sírio Ahmed al-Sharaa, que em 2003 se juntou aos grupos islamitas no Iraque e chegou a estar preso pelos americanos; a morte de Dick Cheney, vice-presidente de George W. Bush e considerado o principal mentor da invasão do Iraque em 2003; e, talvez menos apercebida, a promoção pelo general Khalifa Haftar, homem forte da Líbia, do seu filho Saddam, a um alto posto militar, sendo que o jovem Haftar nasceu em 1991, o ano da libertação do Kuwait por uma coligação internacional liderada pelos Estados Unidos, e foi assim chamado em homenagem ao líder iraquiano, que viu as suas tropas expulsas do pequeno emirado, mas evitou que George Bush (Bush pai) avançasse até Bagdad. Cheney nessa Administração era secretário da Defesa, e ainda hoje se especula se o ataque de 2003 ao Iraque não foi para Bush filho acabar o trabalho deixado incompleto por Bush pai, mesmo que enquadrado na “Guerra ao Terror” lançada em reação aos atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gémeas de Nova Iorque e o edifício do Pentágono, em Washington.

Desde a queda de Saddam, que foi depois capturado e executado, que o Iraque procura reconstruir-se. Os americanos, alegando a posse de armas de destruição maciça pelo Iraque, conseguiram substituir a ditadura do partido Baas por uma democracia, mas esta tem de lidar com um país que pode corresponder à antiga Mesopotâmia, mas foi artificialmente criado pelos britânicos aproveitando o fim do Império Otomano, mais ou menos há um século. Três antigas províncias obedientes ao sultão em Istambul foram unidas, apesar de uma ser de maioria curda, outra de árabes sunitas e a terceira de árabes xiitas. Tão evidente é essa complicada soma imposta de fora, e a sua persistência, que a tentativa de construção da democracia pós-Saddam teve de prever, via entendimento tácito, que o primeiro-ministro será um xiita, o presidente do Parlamento um sunita e o presidente da República, um cargo essencialmente protocolar, um curdo.

Nestas recentes legislativas, a força mais votada foi o partido do primeiro-ministro Mohammed Shia al-Sudani, que, porém, terá de procurar parceiros para uma coligação de governo entre partidos xiitas, como o seu, partidos sunitas vários, partidos curdos e por aí fora, sendo que dentro das comunidades etno-religiosas há ideologias diversas, como a do partido xiita de Muqtada al-Sadr, que apelou ao boicote das eleições e é visto como próximo do Irão. Tarefa complicada, pois, a de al-Sudani, mas, tendo em conta que o Iraque pós-2003 já teve de derrotar os jihadistas do Estado Islâmico e contrariar o separatismo curdo, não impossível.

Al-Sudani mostrou capacidade política e de governação nos últimos anos, transformando o país num estaleiro de obras que permite ver o dinheiro do petróleo a ser investido e gerindo com pinças a relação com os seus dois aliados, Estados Unidos e Irão, inimigos entre si como se viu na breve guerra travada já em 2025. Manter-se fora da turbulência do Médio Oriente é prioridade para quem governa em Bagdad.

Estas foram as sextas eleições legislativas no Iraque desde o fim da ditadura de Saddam. De certo modo, só por isso mereciam ser notícia.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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