Duas narrativas americanas
Há duas narrativas nesta apertada e tão decisiva corrida presidencial norte-americana de 2024.
Sondagem Quinnipiac (23-27 agosto) revela-nos duas realidades claramente identificadas. Se a decisão dos americanos estiver focada no Clima (59-34), nos direitos reprodutivos e direito ao aborto (55-38), na defesa da Democracia (50-45) ou na restrição ao acesso às armas (51-45), Kamala Harris vencerá facilmente. Mas se, por outro lado, o que prevalecer for a Economia (52-46), o combate à inflação (52-45), a Imigração (51-46) ou a guerra em Gaza (49-45), os eleitores dão mostras de confiarem mais em Trump - ainda que os números favoráveis a Kamala sejam mais definidores do que os que mostram vantagem a Donald. Também há empate ou tangentes: crime (Kamala 49-48), gerir uma grande crise nacional (Kamala 49-48), guerra Rússia-Ucrânia (Trump 49-48), Supremo (Kamala 49-47). Mas, nestes casos, as diferenças são tão pequenas que não deverão ser estes temas a decidir.
Esta fratura de “duas eleições numa só” revela-se na diferença de géneros: as mulheres preferem esmagadoramente Kamala (58-37), os homens dão enorme vantagem a Trump por diferença quase igual (57-39). Os eleitores independentes estão repartidos: 45-45. Os jovens preferem Kamala por 52-39, os negros por 75-20. Os eleitores de Kamala (75%) estão mais entusiasmados que os de Trump (68%).
Os democratas vão tentar manter a conversa desta eleição em temas como o aborto ou a defesa da Democracia. Os republicanos querem mudar a agulha para a Economia e a Imigração. Quem dominar a narrativa nos próximos dois meses terá tudo para vencer.
A eleição começa já na sexta-feira
A grande maioria dos norte-americanos só irá às urnas a 5 de novembro, mas a Eleição Presidencial está mesmo perto do seu início.
A votação antecipada começa já no dia 6 de setembro, próxima sexta-feira, com o envio de boletins para o voto por correspondência na Carolina do Norte, um dos sete estados decisivos. Para pelo menos alguns eleitores dos restantes seis, os boletins serão expedidos até ao fim do mês de setembro.
Ou seja: quando dizemos que as eleições são a 5 de novembro, na verdade nessa data elas terminam na possibilidade de se exercer o direito de voto, mas significam o fim do período eleitoral de quase dois meses que está quase a começar.
Em alguns estados, o “early vote” por correspondência só é permitido a militares ou pessoas com doenças que impeçam a deslocação aos locais de voto. Mas noutros estados, quase todos os eleitores podem votar pelo correio. Muitos estados expandiram a elegibilidade em 2020, quando a pandemia tornou mais arriscado votar pessoalmente. Há quatro anos, isso deu vantagem a Biden. Será que, desta vez, a candidatura Trump trata este fenómeno de forma mais séria e inteligente, em vez de atirar, irresponsavelmente, acusação falsa de roubo?
Uma entrevista inconclusiva
Na primeira entrevista como candidata, com Tim Walz ao lado, Kamala surgiu mais ao centro, afastou-se do “esquerdismo” em que muitos a colocavam até à Convenção. Harris tentou elogiar Biden, mas mostrar que terá nuances importantes numa sua futura administração. “Acredito que sou a melhor pessoa para este cargo neste momento”, elaborou, numa suave demarcação de Biden. Mas Kamala fez questão de lembrar os feitos da Administração Biden, no “Bidenomics” pós-covid.
O posicionamento ao centro de Kamala manifestou-se na defesa do Fracking (importante na economia da Pensilvânia), numa visão mais realista da gestão da imigração e no anúncio de que colocará um republicano no seu Governo. Kamala insistiu na prioridade de “apoio e reforço à classe média”. Harris lembrou medidas concretas como a criação de um teto para os custos de medicação para idosos e o aumento do número de empregos na área da indústria, classificando-os como “um bom trabalho”. E sobre querer pôr um republicano na sua administração: “Passei a minha carreira a apelar à diversidade de opiniões. Penso que é importante ter pessoas à mesa, quando estão a ser tomadas algumas das decisões mais importantes, com pontos de vista e experiências diferentes. Seria benéfico para o público americano ter um membro do meu Governo que fosse republicano”.
O que a terá levado a mudar de posição no fracking e na imigração? “É porque tem mais experiência agora e aprendeu mais sobre as informações? É porque estava a concorrer à Presidência numa primária democrata? E eles devem sentir-se confortáveis e confiantes de que o que está a dizer agora vai ser a sua política daqui para a frente?”, atirou Dana Bash, jornalista que conduziu a entrevista. “O aspeto mais importante e mais significativo da minha perspetiva e decisões políticas é que os meus valores não mudaram”, alegou a candidata.
Possível troca de câmaras no Congresso
A 5 de novembro não se vota só para a Casa Branca. Vai escolher-se, também, toda a Câmara dos Representantes e um terço do Senado. Os democratas controlam o Senado e os republicanos têm, por pouco, o domínio da Câmara Baixa. As sondagens antecipam uma possível troca: é de admitir que os democratas tomem o controlo da House of Representatives, embora não por uma grande margem. Quanto ao Senado, é provável que passe para a mão dos republicanos.
O RealClearPolitics antevê 50 lugares certos para os republicanos, 45 certos para os democratas e cinco empates técnicos. Basta que um desses cinco caia para os republicanos para que a Câmara Alta mude de mãos. Os cinco em aberto são no Arizona e no Michigan (em ambos os casos em aberto após não-reeleições, com o democrata Gallego na frente da republicana Keri Lake no Arizona e a democrata Slotkin na frente do republicano Rogers no Michigan); o lugar do democrata Tester, no Montana, está em risco perante a atual liderança do republicano Sheehy; no Ohio, Sherrod Brown tem pequena vantagem para defender o seu lugar sobre o challenger republicano Moreno; na Pensilvânia, o democrata Bob Casey tem sete pontos de avanço na defesa do lugar, sobre o challenger republicano McCormick.
A incógnita do “voto oculto”
A Convenção de Chicago fez Kamala subir consideravelmente na taxa de aprovação: está agora nos 50%, quase 20 pontos acima do que acontecia há um mês e pouco, quando o ticket democrata ainda era liderado por Biden. A desaprovação da vice-presidente está nos 46%, pelo que, de acordo com sondagem Morning Consult, Harris tem +4% de saldo favorável, 12 pontos acima dos oito negativos de Trump (44-52).
Quem se mantém numa rampa deslizante na popularidade é o candidato a vice dos republicanos. J.D. Vance tinha -3,3% de saldo a 18 de julho; -5,3% uma semana depois; -7,3% a 8 de agosto; -9,1% a 15 de agosto; está agora com -9,7%. Isto, sim, é uma rampa deslizante.
A grande dúvida é se continuará a haver um núcleo de uns 5% de eleitores que tem medo ou vergonha de dizer nas sondagens que vai votar em Trump. Se isso em 2016 pode ter tido algum peso, em 2020 Trump perdeu para Biden nas urnas, mas desempenhou melhor do que as últimas sondagens apontavam. No Wisconsin, no Michigan e na Pensilvânia, Biden chegou ao dia da eleição geral com 4 ou 5 pontos percentuais de vantagem, mas na verdade as diferenças foram bem menores: +2,7% no Michigan, +1,2% na Pensilvânia, +0,6% no Wisconsin. Nas intercalares de 2022 foi ao contrário: o “voto oculto” estava em quem pretendia travar a vitória dos candidatos trumpistas deniers do que aconteceu em novembro de 2020.
Como será desta vez?