Donald Trump e a Europa: um dilema, incertezas muitas
No seguimento da conversa telefónica entre Donald Trump e Vladimir Putin, lembro o que a experiência repetidamente me ensinou: as negociações com um ditador manhoso são como atravessar um chão minado, repleto de armadilhas políticas. O sabido diz uma coisa e faz outra. Não tem a intenção de ceder, nem de chegar a um compromisso. Está convencido de que tem a razão absoluta e a força toda, e que, por isso, atingirá os seus objetivos. A discussão com a outra parte é um embuste. Destina-se apenas a ganhar tempo e espaço para continuar a sua linha política e as ofensivas militares. Na maioria dos casos, o déspota olha para o seu interlocutor com desprezo e como um ingénuo que pode ser habilmente manipulado.
Na conversa, Putin jogou duas das cartas habituais: dar a impressão de que aceita uma parte do que é proposto e mostrar concordância com o objetivo último - neste caso, o fim daquilo que ambos designam como “a guerra na Ucrânia”. Falar de guerra na Ucrânia é pouco, e é enganador. Esse deve ser o ponto de partida de qualquer discussão com o Kremlin. Há, isso sim, uma agressão armada e desumana da Rússia contra a soberania e o povo ucraniano. E a agressão tem de cessar. Essa é a primeira mensagem que deve ser sublinhada em qualquer encontro com o lado russo. Trump, que se considera um negociador excecional, deveria começar o contacto com uma afirmação dessas. Ao não o fazer, ao aceitar o contexto definido pela parte oposta, entrou no embate a perder.
Trump devia ter mencionado que havia consultado vários dirigentes europeus e também Volodymyr Zelensky. E que, mais tarde ou mais cedo, a negociação teria de incluir a liderança ucraniana e os principais vizinhos europeus da Rússia. Essa omissão, que foi certamente propositada, não só enfraqueceu a sua proposta como terá sido vista por Putin como uma manifestação de desinteresse pela segurança e a soberania dos Estados europeus.
A impressão de desinteresse foi agora acentuada com a notícia de que os EUA poderão, pela primeira vez na história da NATO, não nomear um general americano como o próximo comandante Militar Supremo da organização. O atual SACEUR - assim é designada essa responsabilidade de comando - deverá passar à reserva este verão. A tradição tem sido substituir um americano por outro. Veremos que país será escolhido para exercer a função.
Para já, se se confirmar a decisão americana agora publicitada, apostaria no Reino Unido como tendo a preferência dos americanos. Todavia, não vejo as tropas americanas na Europa subordinadas a um SACEUR que não seja um general americano. Isto quer dizer que os EUA manterão um quartel-general em Estugarda, uma presença no nosso continente, mas fora da linha de comando da NATO. Formalmente, o país continuará na NATO e, ao mesmo tempo, em termos operaccionais, ficará desligado da Aliança. Politicamente, dentro, botas e fardas fora. Do ponto de vista militar, serão como um espetro a vaguear pelos corredores do SHAPE (Supreme Headquarters Allied Powers Europe), o comando militar da NATO baseado em Mons, na Bélgica. Todos os espetros ou fantasmas geram receios, hesitações e muita precaução. E este andará com os olhos bem abertos.
A Europa tem agora dois desafios pela frente: desenvolver as suas capacidades de Defesa e reforçar o apoio à Ucrânia. A ameaça que pesa hoje sobre a Ucrânia pode amanhã chegar a outras partes da Europa. Ambos os desafios são extremamente difíceis. Mas, urgentes e vitais.
No que diz respeito à Ucrânia, para além da assistência militar e financeira, será preciso exercer uma diplomacia muito astuta junto da liderança americana. O apoio dos EUA é essencial para manter a capacidade militar dos ucranianos e para forçar os russos a aceitar uma solução justa do conflito que criaram. Será difícil, mas não é impossível, porque Trump é muito sensível ao modo como lhe acariciam o ego.
A construção de uma teia de Defesa europeia está a dar os primeiros passos. A Comissão Europeia acaba de publicar um plano de ação (White Paper) com três grandes objetivos: expansão das indústrias europeias de defesa; investimentos em várias áreas, incluindo na Inteligência Artificial e na tecnologia quântica; promoção da cooperação operacional, da prontidão na resposta a cenários agressivos e da mobilidade militar entre os Estados.
Tudo isto exige dinheiro, muito dinheiro, e demora vários anos a construir. A Europa terá de passar a contar consigo própria. Simultaneamente, não pode deixar alienar a proteção americana, numa altura em que os EUA de Donald Trump estão focados noutros problemas e não morrem de amores pela UE. Trata-se de um dilema enorme, que nos exige bastante tato político.
Conselheiro em Segurança Internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU