Domingo à tarde
Eram aí três da tarde quando entrei na pastelaria do bairro para tomar o terceiro ou quarto shot de cafeína do dia. Era domingo, e vinha a ouvir no rádio do carro uma salada russa de discursos entediantes do último dia do Congresso do PS temperados com comentários de convidados e analistas excitantes como benzodiazepinas. Discursos moles na retórica, vazios no conteúdo, insípidos na verve e amadores na elocução - para os menos versados nessa muito antiga e hoje caída, aparentemente, em desuso arte da oratória, a técnica de frisar pontos-chave de uma mensagem com um elevar da voz, uma pausa que pode ser curta ou longa consoante a técnica específica do orador, e o culminar de uma exposição, que se deseja racional e inteligente do tema central do discurso, com uma frase curta, sintética e, sobretudo, viva, como se arrancada das entranhas que, mais do que apelar à razão, apela à emoção.
Essas muito velhas artes da retórica e da oratória dominaram a vida política desde os primeiros tempos da democracia. Saber falar, saber expôr, saber convencer e saber conquistar as mentes e os corações eram essenciais na vida pública, quando não havia rádio e, sobretudo, quando não havia televisão, redes sociais, consultores de imagem e consultores políticos a escreverem discursos. Um bom orador político, como escreveu Cícero, ele mesmo o paradigma da oratória, devia ser como um actor num palco. Falando de Quintus Roscius, um antigo escravo que um século antes de Cristo se tornou no actor mais famoso (e rico) do seu tempo, Cícero dava-o como exemplo a seguir: “Quando as pessoas sabem que ele vai falar, todos os lugares ficam ocupados. Quando se levanta para falar, a multidão impõe o silêncio, interrompido por aplausos e admiração. Riem quando ele quer; quando ele quer, choram.”
Quando foi a última vez que ouvimos, fascinados, o discurso de um político? Quem se lembra, para recuar apenas àquilo que na longa fita do tempo é apenas ontem, de um discurso, de uma frase, de um rasgo oratório de António Costa? Ou de José Sócrates? Ou do campeão da falta de jeito para o público que foi Passos Coelho? Ou, para ir ao professor da prolixidade verbal, de um discurso de Marcelo Rebelo de Sousa? Ou quando é que foi a última vez - ou a única vez - que o político mais bem-sucedido eleitoralmente em Portugal, Aníbal Cavaco Silva, nos fez rir, ou nos fez chorar (e não vale rir ou chorar “dele”)? De António Guterres a memória colectiva retém apenas o “é fazer as contas”, mas isso não era um discurso, nem a habilidade retórica de passar para os outros um estimulante desafio aritmético, apenas um desabafo.
Das grandes figuras da democracia no último meio-século apenas Mário Soares, Salgado Zenha e Álvaro Cunhal eram os mestres da oratória. Concordasse-se ou não com as suas ideias, a construção dos seus discursos conseguia essa hábil mistura entre eloquência e paixão que arrastava multidões, mesmo que não conquistasse eleitores. Quem assistiu ao vivo aos congressos iniciais do tempo da democracia, ou aos comícios que atraíam multidões, nunca esquecerá esses momentos de emoção colectiva desencadeada mais pelas palavras que pela força das suas ideias, na sábia mistura dos preceitos ciceronianos de exórdio e peroração - hoje tão esquecidos que será necessário ir ao dicionário para perceber o seu significado.
Churchill foi possivelmente o último grande mestre da arte do discurso da era pré-televisão e redes sociais. Dedicava horas à sua elaboração, sem recurso a speechwriters ou assessores, recorrendo apenas à sua vastíssima erudição e conhecimento dos clássicos, ensaiando ao espelho como os ia dizer, e escrevendo-os numa linguagem incisiva de palavras curtas e directas. “Vamos combatê-los nos mares e oceanos, vamos combatê-los nas praias, nunca nos renderemos” valeu, como se disse na época, mil canhões. Ou, na frase célebre de Edward Murrow, o correspondente da CBS em Londres, foi um discurso que “mobilizou a língua inglesa e a enviou para a frente de batalha”.
Lembramo-nos de outros grandes discursos recentes (isto é, já da era da televisão), como o “não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, pergunta o que podes fazer pelo teu país” de John Kennedy, mas há dúvidas sobre quem foi o autor da frase. Ted Sorensen, conselheiro de Kennedy, disse diplomaticamente no seu livro de memórias não se lembrar quem é que tinha tido a ideia. E, mais recentemente, até o famoso “Yes, we can”, que é a imagem de marca de Barack Obama, não é da sua autoria (o discurso foi escrito por um assessor).
Em vão se poderia procurar nos discursos políticos contemporâneos vestígios de grandes oradores portugueses, de António Vieira a Garrett ou até Brito Camacho, o político republicano que começou um discurso criticando uma lei do Governo da época com a imortal frase “No tempo em que os animais falavam (falavam mas não escreviam)” - o que hoje seria alvo de uma severa admoestação do presidente da Assembleia da República, outro orador que não se distingue pela capacidade de empolgar audiências antes pelo rigor cronométrico com que interrompe as divagações elucubratórias dos parlamentares. Como reagiria Fidel Castro, que nunca se contentava com menos de sete horas para dizer o que tinha a dizer nos seus discursos, se fosse interrompido com o “esgotou o seu tempo, sr. Fidel”, é matéria para sonhar. Puxaria da pistola?
As fontes de inspiração não estão hoje nos clássicos. Estão no Twitter, no Instagram, no WhatsApp, e são tão efémeras e insubstanciais como um bite virtual num chat a dizer que aprovamos um pagamento de meio milhão. Nem é o “Yes we can”, é mais o “yes, you can” pagar. Não é Cícero, nem Churchill, não admira que se esqueça facilmente.
Entrei assim na pastelaria. Cá fora estava frio, lá dentro meia-dúzia de senhoras vestidas e penteadas para irem à pastelaria numa tarde de domingo ocupavam três mesas milimetricamente juntas, conversando sobre coisas ininteligíveis que só se conversam em mesas ocupadas por senhoras vestidas para irem à pastelaria ao domingo à tarde. Questões domésticas, netos, saúde, o raio dos imprestáveis maridos? Para pena minha não consegui ouvir.
Nas restantes mesas vários clientes, todos homens - seriam os maridos? - olhavam fixamente para a televisão pendurada numa parede. E não, não estavam a assistir ao Congresso do PS. Estavam a ver futebol. Riem quando o clube ganha, choram quando o clube perde. É ao que chegou Cícero.
Diretor do Diário de Notícias