Dois relatórios europeus e um psicodrama nacional

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Os relatórios de Enrico Letta e de Mário Draghi inocularam urgência no debate europeu. Letta exigiu maior integração no Mercado Único. Draghi quer uma nova forma de vida económica e política que trave a perda de competitividade. Um e outro avisam que a alternativa é o agravamento da decadência europeia. Os alertas não são novos. O âmbito geopolítico do que está escrito, sim.

Mais do que salvar a economia, os apelos são existenciais. A desindustrialização, o desinvestimento, o inverno demográfico, o atraso na inovação, a burocracia e outros indicadores nada elogiosos comprometem a segurança e a defesa do Velho Continente. E tornarão inviável o modelo social europeu.

O chavão ‘gigante económico, anão político’ perdeu validade - a primeira premissa desapareceu e a segunda não dá sinais de melhoria. A trajectória actual, disse Letta ao diário El País, leva-nos a uma escolha simples: queremos ser uma colónia chinesa ou norte-americana?

A supremacia industrial da China é evidente no sector automóvel, uma das mais intensas frentes do combate geopolítico. As viaturas eléctricas chinesas estão a tomar de assalto a Europa graças a preços médios inferiores aos praticados por marcas europeias. A disparidade explicar-se-á com ajudas de Estado concedidas por Pequim e com matérias-primas adquiridas sem grande cuidado com os Direitos Humanos. O possível - e inédito - encerramento de fábricas automóvel na Alemanha e as paragens de produção em Itália também são consequência disto.

A Comissão Europeia impôs agora tarifas à importação. A reacção do sector mostrou um continente dividido: alguns fabricantes europeus opuseram-se à decisão por temerem represálias, mas também porque têm unidades de produção na China. Claro, esta guerra não se vence apelando à responsabilidade dos consumidores europeus, cujos salários pouco ou nada crescem quando o custo de vida aumenta.

A Oeste os desafios não são mais fáceis. Biden aprovou um pacote de medidas batizado Inflation Reduction Act (IRA) que, entre fiscalidade e investimento, supera os 890 mil milhões de dólares, destinados sobretudo à transição energética. Sem surpresa, muito investimento directo estrangeiro preferiu os EUA à Europa. Mais preocupante, várias empresas europeias desviaram capital, recursos humanos e tecnologia para o outro lado do Atlântico. A nova economia digital alinha pela mesma tendência, com 30% dos ‘unicórnios’ fundados na Europa a transferirem as sedes para o estrangeiro, a grande maioria para os EUA.

Uma vitória de Trump em Novembro não aliviará a pressão. As diatribes contra a ‘agenda verde’ esbarrarão em muitos empregos e fábricas criados em Estados Republicanos. Trump eliminará medidas menores do IRA, mas não se atreverá a mudanças profundas nas condições de investimento, sob pena de maior vulnerabilidade perante a China.

O desafio colocado à Europa é hercúleo. O caminho a fazer é homérico. Se assim não for, o futuro será agónico - palavra de Draghi. 

Enquanto isto, Portugal entreteve-se semanas a fio com um psicodrama à volta de um ponto percentual no IRC.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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