O sistema internacional contemporâneo atravessa uma fase de transição estrutural que pode ser sintetizada na passagem do multilateralismo institucionalizado para uma lógica de sobrevivência estratégica. Durante a década de 1990 e os primeiros anos do século XXI, prevaleceu a convicção de que a interdependência económica, a expansão das instituições multilaterais e a difusão de normas internacionais funcionariam como barreiras preventivas contra o retorno da guerra interestatal. Contudo, os conflitos da Ucrânia e de Gaza, revelam a erosão dessas premissas e a emergência de um ambiente internacional fragmentado, multipolar e instável.A guerra na Ucrânia ilustra o regresso do conflito de alta intensidade em território europeu, apesar da integração económica e política entre Moscovo e o Ocidente nas últimas décadas. A Rússia prossegue operações ofensivas na Ucrânia, combinando ataques convencionais com estratégias de desgaste dirigidas a infraestruturas críticas. Kyiv, por sua vez, responde com ataques de longo alcance sobre depósitos e refinarias russas, numa dinâmica de guerra prolongada sem horizonte de vitória decisiva. Segundo o Banco Mundial, as perdas acumuladas ultrapassam 500 mil milhões de euros, enquanto mais de 10 milhões de ucranianos permanecem deslocados. O desgaste estende-se à Europa, onde se observa fadiga estratégica: orçamentos comprimidos, consensos políticos frágeis e crescente instrumentalização populista do custo da guerra.No Médio Oriente, por seu turno, a ofensiva israelita em Gaza, mantém um impacto humanitário devastador. Um território em colapso social, sem acesso regular a água, eletricidade ou cuidados médicos. As negociações mediadas pelo Egito, apoiadas por propostas externas como o plano de paz de 20 pontos avançado por Donald Trump, revelam o impasse estrutural: Israel exige o desarmamento do Hamas; este reivindica trocas de prisioneiros e garantias de natureza política. Estas negociações não configuram ainda um processo de resolução do conflito, mas atuam sobretudo como mecanismos de contenção da violência e de mitigação do risco, com efeitos imediatos de caráter essencialmente humanitário.Estes dois teatros de guerra evidenciam um fenómeno sistémico: a transição para uma ordem internacional pós-multilateral, caracterizada por três tendências principais. Em primeiro lugar, a diluição do poder: os Estados já não detêm o monopólio da guerra ou da paz, disputando espaço com atores não estatais, conglomerados tecnológicos e alianças ad hoc. Em segundo lugar, a fragmentação institucional: a ONU encontra-se paralisada por bloqueios no Conselho de Segurança, a NATO enfrenta divergências políticas entre membros e a União Europeia regista divisões internas quanto ao esforço estratégico. Em terceiro lugar, a emergência de novas centralidades: os BRICS expandem a sua influência, enquanto potências médias - Turquia, Egito, Índia ou Brasil - assumem papéis de mediação com crescente legitimidade.Neste contexto, o multilateralismo clássico cede lugar a arranjos transitórios e equilíbrios instáveis, em que a diplomacia se converte em instrumento de contenção e a negociação em pausa tática, mais do que em solução estrutural. A globalização, longe de neutralizar conflitos, mostra-se compatível com a guerra, que regressa ao centro do sistema internacional como variável estruturante.A nova ordem mundial não se organiza em blocos rígidos, mas em redes flexíveis de conveniência. Não há vencedores inequívocos, apenas atores que procuram sobreviver ao próximo choque, num cenário de competição permanente, fadiga institucional e instabilidade sistémica. Especialista em Segurança e Defesa