Do Livro à Estrada das Ideias

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Desde ontem, 25 de novembro, quando lancei o meu livro em Lisboa, sinto que não coloquei no mundo apenas uma obra, assumi também uma responsabilidade. Meio século a lidar com governos, sistemas e reformas adiadas ensinou-me que nenhum texto vale sem estrada e que nenhum diagnóstico tem utilidade se não gerar movimento. Enquanto apresentava o iGov – Cidadania Ativa, percebia que cada crónica, memória e provocação era um convite, um empurrão e uma convocatória para o país acordar.

Durante 52 anos, vi o Estado fechar-se e abrir-se em ciclos, prometer reformas que nunca vinham, reinventar burocracias sob novas formas eletrónicas, perder soberania digital enquanto acreditava ganhá-la. Vi 30 governos repetir erros e feiras de vaidades, vi silos informacionais transformarem-se em trincheiras, tecnologias compradas como talismãs aplicadas como remendos e cidadãos obrigados a renascer todos os anos perante a administração. Escrevi este livro porque não basta modernizar, é preciso compreender, questionar e agir.

Mas ontem percebi que o livro sozinho não chega. Precisa de sair da prateleira, atravessar o país, ser discutido, contrariado e enriquecido. Precisa de ganhar estrada, pó e vozes. Por isso anunciei as minhas Caravanas da Cidadania, talvez a parte mais ambiciosa e arriscada deste projeto.

Não quero eventos formais nem conferências abafadas por powerpoints. Quero encontros vivos com autarcas, associações cívicas, escolas, universidades, empresas e cidadãos que nunca são chamados para a mesa onde se decide o seu futuro. Quero conversas onde se discuta o combate à burocracia sem medo, onde se fale de transformação digital sem romantizar tecnologia, onde se entenda a diferença entre governação algorítmica e democracia viva, onde se encare o risco do tecno-feudalismo e a urgência de recuperar a soberania digital. Quero escutar, inspirar e mobilizar, porque nenhuma reforma sobreviverá sem cidadania ativa.

Perguntam-me se vale a pena. Se não é utopia acreditar que um Estado atravessado por silos, resistências e interesses instalados pode ser transformado pela participação pública. Respondo que não só vale a pena, como é impossível que o futuro aconteça sem isso. A tecnologia tornou-se um território político e ético onde se joga a democracia das próximas décadas. Inteligência artificial (IA), big data, automatização e regulação máquina-a-máquina são hoje o centro dos conflitos que já vivemos. Ou os cidadãos recuperam o seu lugar ou serão substituídos por métricas e algoritmos sem humanidade.

As caravanas atravessarão territórios onde a exclusão digital é a regra. Vamos enfrentar descrença, fadiga democrática e discursos populistas cada vez mais ocos, mas também encontraremos quem queira pensar o futuro e perceba que a reforma do Estado é uma questão de sobrevivência coletiva. Encontraremos professores e médicos presos a tarefas mecânicas, imigrantes perseguidos e perdidos entre procedimentos, jovens descrentes do voto, autarcas sufocados pela falta de interoperabilidade e profissionais que perderam dignidade na burocracia eletrónica que deveriam combater. Todos eles estão no livro e todos terão lugar na conversa.

Ontem apresentei um livro e hoje começo um caminho. Sei que é mais longo do que eu, mais ambicioso do que qualquer agenda política e mais urgente do que muitos admitem. Acredito que cada quilómetro percorrido pelas Caravanas da Cidadania pode resgatar um pedaço do futuro que temos adiado. Um futuro onde a tecnologia serve a democracia, onde o Estado recupera a sua missão e onde o cidadão volta a ser o centro de tudo.

Se este livro é a bússola, a estrada será a prova de fogo. Talvez, depois de atravessar o país, consiga confirmar que a verdadeira transformação digital do Estado começa na transformação cívica de cada um de nós.

Especialista em governação eletrónica

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