Há dias, foi o país sobressaltado pelo alarme de que a “extrema-direita” perdera o que lhe restava de pudor. O país estrebuchou diante da desfaçatez. Como se atrevera Ventura a espalhar pelas nossas cidades cartazes onde se lê: «Isto não é o Bangladesh»? Onde está a nossa costumaz bonomia? Para onde foi a hospitalidade? Que vão pensar os turistas? Que sentirão os emigrantes?A imprensa escrita, televisiva e radiofónica repetiu as perplexidades. O ex-líder do MRPP instou o Ministério Público a recordar ao Tribunal Constitucional o dever de extinguir o Chega, protegendo-nos do «fascismo» que a Constituição proíbe. Em resposta, alguém lembrou a Garcia Pereira os cartazes do MRPP que, ainda em 2015, execravam o discurso de ódio com o amoroso lema «morte aos traidores». Cartazes onde a hermenêutica peculiar de entendidos, então encarregados de vigiar a urbanidade dos partidos concorrentes às eleições, apenas viu uma metáfora inócua.A irritação com o cartaz de Ventura explica-se obviamente pelo medo que suscita a comunicação bem conseguida, que levou o Chega, em poucos anos, a segundo partido parlamentar. De repente, todos falam nisso e a expressão «Isto não é o Bangladesh» torna-se “viral”. É só isso que assombra a esquerda radical alçada em guardiã da democracia. Talvez esta já imagine os colegas de um estudante baldas, num trabalho de grupo, dizendo-lhe: «É pá, não estás no Bangladesh!». Ou alguém numa repartição diante de um funcionário descuidado: «Olhe lá, isto não é o Bangladesh!». Ou numa urgência hospitalar: «Já chegámos ao Bangladesh?». São fantasias que decerto perturbam o sono dos bocejantes discursos habituais, incapazes de lidar com Ventura. Mas perturbam porque estes sabem, no fundo, que não é o cartaz que suscita ódios. É antes a frustração pelo estado a que chegámos, e cuja revolta nada tem que ver com ódios, que lhe dão palco e sucesso.Não há muitos anos, aliás, semelhante cartaz não causaria escândalo nem seria visto como despudorado e perverso. Seria visto como o que é: propaganda política eficaz, que critica, de forma contundente, a situação em que nos encontramos. Há, na história mais ou menos distante, muitos exemplos de expressões análogas que, em épocas menos dadas a histeria e alarmismo, não suscitaram idêntica reação. Há poucos anos, por exemplo, era hábito usar no parlamento português o verbo «mexicanizar» para designar o clientelismo e a perpetuação no poder. A ninguém ocorreria que a alusão ao PRI hostilizasse os mexicanos residentes.Outro exemplo: há cem anos, surgia em França o verbo «portugaliser» com o sentido de «anarquizar»; ou a expressão «ce n’est qu’une révolution au Portugal» para significar algo banal e corriqueiro. Usava-se esta quando, antes do 28 de Maio de 1926, a Primeira República transformou o nosso país numa balbúrdia de atentados, assassínios e golpes quotidianos. Não era que os franceses odiassem Portugal. Apenas tinham a realidade diante dos olhos e não havia ainda poder mediático tão forte e intrusivo que os inibisse de olhar para ela. Passa-se o mesmo com o cartaz de Ventura e a expressão «Isto não é o Bangladesh!». Não se trata de atacar ninguém. Não é promoção de xenofobia. Mas trata-se de aludir, de forma irónica e provocadora, ao que nos tornámos como país. Fazendo-o, Ventura mostra não se submeter aos melindres dos que têm como ocupação discutirem entre si o que os outros podem ou não dizer e pensar. Ainda bem. Talvez isso o leve a Belém.