Discursos de (p)ódio

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Gosto de observar e de analisar o comportamento humano. Não pela lente de uma espectadora de um qualquer reality show, desesperada por anestesias de entretenimento, mas segundo a perspectiva de uma pessoa que encontra na natureza humana um intrigante quebra-cabeças.

Fascina-me, por exemplo, observar como filhos da mesma genética e da mesma educação se podem construir tão diferentes em personalidades e atitudes.

Ao mesmo tempo, considero perturbadora a aparente facilidade com que atravessamos a linha que separa uma presumida sanidade de uma diagnosticada insanidade.

Inquieta-me igualmente a incoerência com que exigimos condutas que não conseguimos adoptar.
Mas, por muito e por mais que observe, continuo incapaz de decidir se o ser humano é “intrinsecamente” bom ou mau.

Na realidade, interessa-me pouco essa discussão porque, pelo que vivo e vejo, os nossos comportamentos são, sobretudo, reflexo de uma série de condicionamentos.

Por exemplo, desde cedo somos programados para esperar o pior daqueles que não conhecemos, entrincheirando-os na condição de “estranhos” ou de “outros”.

Em vez de aprendermos a aproximarmo-nos de todos desde a infância, e a conviver com a diferença e até com a estranheza que ela pode gerar, somos instruídos a afastarmo-nos das pessoas que não conhecemos, e a ver nelas uma ameaça. E se, em vez disso, formos ensinados a reconhecer os comportamentos que representam uma ameaça para nós e para os outros?

Talvez se tornasse menos desafiante denunciar familiares violentos, e deixar de confundir abusos com cuidado.

Talvez até conseguíssemos sair das nossas bolhas assépticas, e libertarmo-nos da ideia de que todas as pessoas que não conhecemos são, à partida, merecedoras de desconfiança e de desrespeito.

Afinal, que outra leitura se poderá extrair da ideia de que “o outro” tem de conquistar o nosso respeito e a nossa confiança? Por que é que recai sobre “o outro” - seja ele quem for - esse ónus?

Ensinam-nos que essa é uma forma de nos protegermos do mal. Passamos, então, a ter medo, e a associar ao “outro” todos os males que nos rodeiam. Afinal, as nossas frustrações e descontentamentos não podem morrer solteiros.

E é assim que, entre dissabores próprios da vida, o “outro” se torna o alvo preferencial de ódios há muito induzidos.

Não são ódios de agora, nascidos em tempos de crise, e imputáveis à voracidade e anonimato das redes sociais. São ódios de sempre, mas talvez pareçam “novos” aos olhos de quem nunca foi apontado como “outro”.

Insisto, por isso, no que me parece óbvio: da mesma forma que a realidade supera a ficção, também supera o virtual.

É na vida de todos os dias que pessoas negras continuam a ser agredidas e perseguidas até à morte.

Os homicídios de Alcindo Monteiro; Elson Sanches; Mc Snake; Giovanni Rodrigues e Bruno Candé, entre tantos “outros”, comprovam-no.

Por isso, ainda que reconheça a urgência de um firme combate aos discursos de ódio online, o que me inquieta verdadeiramente é que assistamos a manifestações presenciais de ódio, como quem se limita a acatar um inferior desígnio da Humanidade.

Mais do que confrontar o ódio que sempre esteve entre nós, e vive na narrativa d’ “os outros”, importa desmantelar o pódio que lhe é consagrado a partir da legalização da extrema-direita, e da sua normalização no espaço público.

Como pode um partido eivado de ódios, discriminações e distorções integrar um sistema democrático que se quer respeitador de Direitos Humanos, ir a votos, e conquistar cada vez mais eleitorado?

A responsabilidade não é dos “outros”. É nossa.


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