A embaixada do Cazaquistão em Portugal organizou há dias o jantar “Estepe e Oceano”, com a vinda a Lisboa de Artem Kantsev, um chef cazaque, e quase ao mesmo tempo a embaixada portuguesa em Astana divulgava que o tenor Luís Gomes deu um concerto na Universidade Nacional de Artes do Cazaquistão, no qual incluiu canções de Vianna da Motta. Mas se a diplomacia cultural é importante para aproximar os dois países - um no extremo ocidental da Europa, pequena nação aberta para o Atlântico, o outro no coração da Eurásia, maior país do mundo sem litoral oceânico -, a vertente política e económica da relação tem uma importância acrescida, mesmo que trabalhada no contexto europeu, sendo significativo que protagonistas portugueses desempenhem um papel de primeiro nível, como António Costa, que esta quinta-feira se encontra com o presidente Kassym-Jomart Tokayev.É na qualidade de presidente do Conselho Europeu que Costa se desloca a Astana, para celebrar os dez anos da parceria entre a UE e o Cazaquistão, e não deixa de ser curioso que no lançamento dessa mesma parceria tenha tido um papel essencial outro português, Durão Barroso, como presidente da Comissão Europeia.Em 2023, durante o Fórum Internacional de Astana, entrevistei Durão Barroso, que era um dos oradores principais e, visivelmente, um dos mais apreciados pelos cazaques. O homem que entre 2004 e 2014 foi presidente da Comissão Europeia, depois de ter chefiado o governo português, fez questão de reclamar esse papel no fortalecimento das relações, ao afirmar a importância geopolítica que a maior das repúblicas da Ásia Central dá à UE: “Foi, aliás, na Comissão Europeia a que eu presidi - e é por isso que eles me convidam tantas vezes a vir aqui a Astana - que lançámos o Acordo Reforçado de Parceria e Cooperação entre a União Europeia e o Cazaquistão, com o presidente da altura, Nursultan Narzabayev, e que já entrou em vigor em 2020. A visão do Cazaquistão - que é, como sabemos, uma antiga república soviética - é a de não estar tão dependente nem da Rússia nem da China e estar cada vez mais perto da Europa.”Durão Barroso explicava então a aposta da liderança cazaque, inicialmente de Nazarbayev, o pai da independência em 1991, e hoje de Tokayev, o presidente reformista no poder desde 2019, na chamada diplomacia multivectorial, uma forma de minimizar o estarem situados entre a Rússia e a China e serem um país encravado. A Europa é, tal como os Estados Unidos, um parceiro importante para o Cazaquistão, mesmo que nem sempre tal seja perceptível. “É o primeiro investidor, mas de longe, só que, normalmente, a nível internacional isto não é dito. Toda a gente diz que é a Rússia, ou a China, ou os Estados Unidos, porque os dados aparecem por país, mas, de facto, a UE tem aqui uma presença muitíssimo importante. É uma presença mais discreta politicamente porque, precisamente, não é um Estado, não é um país como tal. Mas isto representa, de facto, uma vontade muito clara do lado do Cazaquistão de estar mais perto de nós, e não só de nós. Eles não querem, embora não o digam com esta clareza, estar presos e, de certa forma, fechados entre a Rússia e a China”.A leitura de Durão Barroso sobre a vontade cazaque de procurar parceiros em geografias longínquas continua atual, até porque ainda em novembro, Tokayev e os presidentes de quatro outros países da Ásia Central, participaram nos Estados Unidos numa cimeira com Donald Trump. A riqueza do subsolo cazaque atrai claramente uma Administração americana preocupada em diversificar fontes de abastecimento, por exemplo, de terras raras, para não perder terreno frente à China, naquela que é já uma competição declarada pela liderança global.Sublinhe-se que a diplomacia multivectorial cazaque não passa pela hostilização nem da Rússia nem da China, basta pensar na atenção que Tokayev dá à relação com Vladimir Putin e com Xi Jinping, dois líderes com quem pode discutir diretamente, até por dominar tanto a língua russa como o idioma chinês. Logo depois da reunião com Trump em Washington, o presidente cazaque fez uma escala em Moscovo para conversar com Putin. E semanas antes tinha feito questão de aceitar o convite de Xi para assistir em Pequim ao desfile a celebrar o contributo chinês para a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial. De notar que em abril, em Samarcanda, no vizinho Uzbequistão, se realizou a primeira cimeira UE-Ásia Central, que juntou aos 27 o país anfitrião, o Cazaquistão e ainda o Turcomenistão, o Quirquizistão e o TajiquistãoNuma recente conversa com Peter Frankopan, o historiador britânico que ganhou celebridade há uma década com o livro As rotas da seda (publicado quase em simultâneo com o anúncio por Xi, em Astana, da Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota), à pergunta sobre se o maior país encravado do mundo tem um grande valor ao ponto de ser disputado por americanos, chineses e russos por causa da localização geográfica ou por causa dos recursos minerais respondeu: “Eu analisaria isto de outra forma: do ponto de vista do Cazaquistão. Um pouco como alguém que tenta obter o melhor preço pelos seus bens/casa etc., quanto mais pessoas estiverem a prestar atenção, melhor. Se os EUA quiserem fazer negócios, envolver-se ou apoiar o Cazaquistão, esta é uma excelente notícia para o país, o presidente e o seu povo: quanto mais interesse, melhor. Isto permite que melhores acordos sejam fechados, em melhores termos. Um dos problemas desta região como um todo é que é quase sempre vista de fora - um campo de batalha; um local para competir, marcar pontos e dominar. Penso que esta é a política e até a história contada através de apresentações em PowerPoint, em vez da realidade. As pessoas que conheço e com quem trabalho nestes países são inteligentes, ponderadas e pensam sempre nas consequências a longo prazo. Isto deixa-me um pouco louco, pois se alguém perguntasse se a Europa é um local a ser disputado pela Rússia, China e EUA, as pessoas pensariam que está louco. Acho que precisamos de mudar a forma como pensamos sobre as pessoas e sobre nós próprios”.Seguindo a recomendação de Frankopan, e acrescentando os europeus aos americanos, aos chineses e aos russos, que se esqueça, pois, a ideia da Ásia Central como campo de batalha de potências e sejam então feitos os melhores negócios no interesse dos cazaques, e das outras partes, e que no caso da UE, liderada por vezes por antigos primeiros-ministros portugueses, isso obviamente se reflita em Portugal.De certa forma, o ser um país que faz pontes, ambição de quem governa em Astana, é também a tradição que existe em Lisboa, de tal forma reconhecida globalmente que neste primeiro quarto do século XXI um português foi já dez anos presidente da Comissão Europeia, outro está a finalizar dois mandatos como secretário-geral da ONU (António Guterres, outro ex-primeiro-ministro português que ainda em agosto foi ao Cazaquistão inaugurar um escritório das Nações Unidas em Almaty) e um terceiro acaba de celebrar o primeiro ano como presidente do Conselho Europeu. Veremos o que trará Costa desta viagem do oceano até à estepe.Diretor adjunto do Diário de Notícias