Dinis H. Machado

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O interesse de Dinis H. Machado, o editor e ficcionista que dirige a The Poets and Dragons Society, não é novo, não é uma questão de moda, e nem sequer é uma cedência a qualquer forma de imperialismo. A chancela de nome inglês mas com Portugal, na margem sul, com Lisboa do outro lado; esta chancela que conta no seu catálogo com nomes relevantes da literatura portuguesa actual (António Cabrita e Luís Filipe Sarmento, para lembrar com justiça) é, hoje, uma destacada marca no livro infantil, mas igualmente conta, na sua colecção de ensaio, com trabalhos de enorme interesse (não só académico) e de que destacaria os de Maria João Cantinho, de João Albuquerque e João Ventura. Este último publicou, com o mesmo desenho gráfico do livro de Dinis Machado de que hoje falo, uma interessantíssima sondagem a Baudelaire, ficção posta sob o signo da "narrativa de viagem2 e que extravasa a figura do poeta francês, posto que seja uma inquirição sobre a modernidade como viagem, deambulação pelo que nela é sinónimo de mórbida vitalidade, perseguição de novos deuses depois da destruição de qualquer olimpo.

Mas é de Dinis H. Machado que importa falar já que, a pretexto de deuses (ou da ausência deles) neste nosso tempo final, a ficção do autor de Heathcliff e Eliot, a estesia do dramaturgo-poeta que líamos em Rash 3, um diário-poema sobre os interstícios da criação em Rashmaninoff, voltar a ser o leitmotiv deste breve e singular livro. O tema é talvez esse mesmo: o do crepúsculo de um deus da contemporaneidade: Elvis Presley. Trata-se, como se lê na capa, de uma "novela" sobre o dia 27 de Junho de 1968. Esse é o tempo do regresso de Elvis aos palcos, cinco anos depois da sua última canção a entrar no top ten e, na verdade, numa época em que, depois da experiência da recruta na Alemanha, o cantor de Love me tender, não era já o inovador destacado da música popular.

The Beatles, The Doors, The Rolling Stones, The Beach Boys, os Jefferson Airplane, os Velvet Underground mapeavam, desde 1967, desde o "verão do amor", as novas sonoridades do rock. Para Elvis, cuja carreira tinha começado cerca de dez anos antes da afirmação plena dos Beatles, ou catorze anos antes da explosão dos The Doors com Light my fire, também em 67, o dia 27 de Junho marcava a eventual reconquista do seu lugar como "rei do rock n’roll". Ou marcaria o seu definitivo ocaso. É o drama humano que Dinis H. Machado procura compreender e, por detrás, ou a reboque desse drama, igualmente se pretende explorar os espaços deixados em branco por esse concerto memorável de 1968. Dinis H. Machado, como vem fazendo em algumas das suas ficções e em alguma da sua poesia, reforça uma estratégia narrativa: recriar, no fundo, o que ficou em branco na história (seja a história de um texto, de um poema ou de um caso humano).

Em Eu Sou Elvis, é precisamente a construção da ficção o que devemos vincar: "mergulho na mente de Elvis no momento mais vulnerável da sua carreira", lê-se em jeito de legenda na capa do livro. E antes do mergulho na interioridade desse semi-deus, umas quantas páginas, em jeito de cortinas que se fossem abrindo à medida dos passos hesitantes deste Elvis regressado à vida, frases que têm, julgo, uma intenção cinematográfica. É a encenação do que não vemos no documentário sobre esse regresso de Elvis o que Dinis reconstrói, reinventando e relendo o drama pessoal desse que, depois de 68, acabaria por, até 1977, ano da sua morte, fixar como uma das imagens do século XX e sua cultura o cabedal negro, os gestos de artes marciais e a voz cálida e sedutora, o olhar felino e melancólico como – e nisto Dinis Machado é exímio – símbolo imperecível de um tempo mítico.

As frases curtas, sincopadas com que a novela abre ("O palco espera. As luzes, ténues, vibram com o calor. Um brilho que se estende pela escurião, sombras longas, incertas, que se projectam sobre o chão polido. Os cabos serpenteiam. Rastejam pelo solo. Enleiam-se. Transportam murmúrios de electricidade, de expectativa […]"), as imagens (subtis sinestesias), a atenção dada a certos pormenores e a transferência da voz narrativa para uma voz – a do apresentador – que abre o palco ao cantor (Bem-vindos à NBC e ao Elvis Presley Special) conduzem-nos não só aos bastidores do espectáculo através de cuja extraordinária interpretação um deus julgado morto voltaria a viver, mas, e sobretudo, conduzem-nos ao mundo íntimo de um artista que dúvida do seu poder simbólico e efectivo em 1968. "É mais velho, mais pesado, carregado pelo tempo, pelos anos, por tudo o que foi e por tudo o que não foi." (p.27). Pormenor na descrição directa: o casaco de couro mais apertado, mas servindo como uma pele; o espelho – motivo fáustico – devolvendo o olhar de quem se olha e não se reconhece, ou se perscruta, tentando ver se ainda há Elvis de 1955 no Elvis de 1968. A descrição directa é, nesta novela, uma lição de sobriedade, de construção de pontos de vista, com o olhar do narrador a conduzir o nosso olhar como uma câmara de filmar através de cuja lente fixamos gestos, imaginamos – porque vemos – a tensão da personagem: "Ele olha para si mesmo. O espelho olha de volta. O rosto é dele, mas não é. É um rosto que eles conhecem, mas não é. […]. Elvis." e a meditação sobre o peso do nome, que o protagonista diz de si para si. Misturam-se hipotipose e deflagração: o leitor acompanha Elvis, como animal temeroso, mas animal acossado, até à juventude reclamada, resgatada. E Dinis Machado dá aos capítulos da novela os títulos das músicas que, nessa noite, Elvis levou aos que o ouviram na NBC e também naquele lugar mágico onde o seu nome, a letras gigantes, luzia.

Qual o sentido desta novela, na verdade? Para a recente ficção portuguesa, onde vendem aos milhares de exemplares os autores mais célebres e celebrados de um estilo fácil, sentimental, pobre de tensão narrativa, cheio de boas intenções para com um público-leitor que há muito deixou de saber ler, um sentido quase didáctico. Esclareço: a literatura não é sentimentalismo a provocar chagas no mundo pobre de quem lê e necessita de se sentir salvo a cada página de pieguice oportunista. Uma novela – cuja intenção é dar a ver o mundo de uma personagem (ao conto cabe a categoria da acção e ao romance a exploração do tempo) – é, para mais nestes dias paupérrimos que nos foram dados viver, a oportunidade de entrar (de mergulhar) num mundo de linguagem que faz corpo com a voz e a face da ficta persona. Elvis, escolhido por Machado para a sua novela, é não só a personagem, mas o símbolo mesmo de um drama: o da criação, ou o da criatura: os deuses mortais que fazem parte de uma constelação que Dinis H. Machado tem sabido reinterpretar com argúcia: de Shakespeare a Eliot, de Rashmaninoff a Elvis, gravando um estilo enxuto e frio, analítico e humano, vivo: "Cada palavra ressoa como um apelo, como uma promessa." (p.62) – essa espera que a queda deste deus, afinal maior, simboliza no céu sem estrelas que já não nos ilumina.

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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