Desde Pessoa até ao mundo

Publicado a

Conheci José Blanco muito antes do encontro na Fundação Gulbenkian por razões familiares. As suas andanças pessoanas foram sempre muito fecundas. Entusiasmava-o o mistério de alguém que procurava o mistério de várias existências. De algum modo, esse caráter multifacetado constituía um desafio permanente, sobretudo para uma personalidade aberta e estimulante. Mas o mais importante era compreender a essência da arte e da criação, como um contínuo incessante. “Orpheu” foi um fenómeno singularíssimo, não pelo facto de ser a marca de uma geração, mas pela subtil ligação entre a contemporaneidade e o futuro. Mais do que as artes, a poesia ou a reflexão, o que importava era o diálogo entre as diferentes formas de criação.

Quando tomamos conhecimento da obra de Amadeo de Souza-Cardoso ou de Almada Negreiros e do que se fazia então na Europa, percebemos que, nas diferenças profundas que apresentavam, há um sobressalto comum. O mesmo se diga de Mário de Sá-Carneiro e de todo o grupo. Hoje, compreende-se que o movimento moderno se inseriu na tendência que encontramos desde o iluminismo e dos românticos, bem como dos naturalistas, no sentido de recusar o fatalismo do atraso e de tentar pôr Portugal ao ritmo da Europa e do mundo. Daí a necessidade de assegurar que o cosmopolitismo contrariasse o isolamento, com o gradualismo e com capacidade de conceber reformas necessárias das mentalidades e dos factos. Esta serena compreensão do tempo permitiu a José Blanco participar e testemunhar momentos cruciais, como o do impulso democrático em “Portugal e o Futuro” de António de Spínola, no panorama global de um país que acordava.

Nada melhor do que a Fundação Gulbenkian para acompanhar as mudanças da Educação, na Arte, da Ciência e da Filantropia. Primeiro que tudo, tratava-se de antecipar e de acompanhar as alterações fundamentais. A maior audácia seria a de pôr ideias em marcha, sem um caminho preconcebido, mas com objetivos claros e a determinação no cumprimento da consigna do fundador Calouste Sarkis Gulbenkian – “Only the Best”. A democracia obrigaria à consagração do Estado de Direito, à liberdade e ao respeito dos direitos humanos e à compreensão de que os riscos devem correr-se, como disse Madalena Perdigão, fazendo da cultura a capacidade de ligar o curso da História e das tradições a um impulso de modernidade e de coragem. José de Almada Negreiros disse que temos de ser os primitivos da gerações futuras. Para tanto, importa compreender donde vimos e para onde vamos.

A biografia de José Blanco abrange a compreensão do património cultural e da criatividade como realidades incindíveis. Nada no património de influência portuguesa no mundo lhe foi estranho, o Museu de Arte Cristã em Goa na sua evolução é um exemplo notável. Tratava-se, no fundo, de perceber que não há memória sem a consideração de uma dinâmica eterna entre o que recebemos e o que legamos. A música, o bailado, a pintura, a escultura, a literatura, o teatro, o mundo das ideias tudo lhe disse respeito. O amor à criação moderna, bem simbolizado na vida de Fernando Pessoa e no seu caleidoscópio plural, ou no inolvidável painel “Começar” de Almada na entrada da Fundação, permitiram ao intelectual e homem de ação projetar a cultura como fator vital de perenidade e de movimento. Desde Pessoa até ao mundo, eis-nos perante a força do pensamento como verdadeiro aguilhão das metamorfoses e das mudanças.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

Diário de Notícias
www.dn.pt