Democracia e banalidade
A banalização da democracia significa também a banalização dos seus intervenientes. Uso aqui a ideia de “banalização” sem qualquer sentido pejorativo: é a habituação ao uso deste modelo, a sua interiorização, a sua neutralização do ponto de vista das opções e dos riscos, estando afirmada de forma inquestionável, pelo menos até agora, há algumas décadas.
Como qualquer vivência coletiva e provavelmente também pessoal, ao fim de algumas décadas, perde-se a épica do desafio e da sua construção inicial, esquecem-se os heróis, superam-se, bem ou mal, as crises e dificuldades de qualquer princípio. Entra-se na normalidade, o que é habitualmente um objetivo e uma vitória – mas também uma desilusão, para quem anseia sempre por conquistas e revoluções ou, pelo menos, por desculpas evidentes para não ir jantar a casa todos os dias.
Com essa normalização de regime, não é possível continuar a ter os mesmos ícones de regime na liderança política. As últimas três décadas em Portugal foram nisso exemplares. Por um lado, a normalização da atividade política retirou-lhe heroísmo e sentido de dever. Por outro, essa regularidade democrática, que nos parece óbvia e natural agora, mas que não o é necessariamente, trouxe também uma clientela associada, no sentido de uma classe de pessoas que, sendo aparentemente necessária ao funcionamento do modelo, até pela carência de candidatos, o depreciam. Desde logo porque este se constitui com base na temporalidade do exercício de cargos e funções, o que é efetivamente negado por quem faz do seu tempo neste mundo uma sucessão de dependências e favores político-partidários. Ao mesmo tempo que despejou um voyeurismo mais ou menos infamante sobre quem se dedique à causa pública, provindo igualmente do voyeurismo global em que todos estamos militantemente instalados, mesmo que a coberto da ideia salvífica de transparência e prestação de contas.
Ora a conjugação destas circunstâncias, naturais – a perda do ímpeto inicial, a normalização do regime e das suas regras explícitas e implícitas, a criação da sua própria clientela imanente, com as suas expetativas e planos próprios, e a criação de uma arena falsamente moral de desnudos para onde todos olhamos – só pode resultar na banalização também das lideranças políticas. Basta ver os percursos profissionais prévios dos principais candidatos. É isto necessariamente mau? Talvez não o seja, que os heróis implicam custos elevados também. E há extraordinários profissionais e pessoas exemplares que foram e seriam sempre péssimos políticos. Mas aquilo que o regime democrático sempre procurou, com a histórica referência inaugural do modelo republicano romano, há dois milénios – de temporalidade necessária no exercício de cargos públicos – foi a imposição de rotatividade e de mudança, bem como de justificação pública de propostas e de resultados.
E, estando a banalidade na nossa agenda comum, é até possível fazer-se um elogio desta banalidade? Até à próxima rotura, não haverá provavelmente alternativa. Afinal, a banalidade de um regime e dos seus executores é o objetivo de qualquer revolução. A alternativa seria apenas a da tecnocracia absoluta na esfera da decisão política, mesmo sendo para muitos um excelente resultado, o que em Portugal normalmente se traduz num corporativismo quase absoluto, convertido numa imobilidade usualmente avençada. Mas, de vez em quando, bate saudade dos heróis, dos seus humores, dos seus rasgos, da sua apetência para o risco e da sua capacidade de fazer acreditar.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa