Como é sabido, "democracia", no grego antigo, significava "poder [ou forma de governo] do povo". Com o tempo, o conceito passou a estar associado fundamentalmente à ideia de liberalismo, sobretudo político, em oposição às formas autoritárias de assumpção e exercício de poder. Não entendo, pois, certos modismos político-jornalísticos, como a bizarra figura de "democracia iliberal", uma óbvia contradição de termos..A associação entre democracia e liberalismo provém, possivelmente, do iluminismo e da Revolução Francesa, em especial na sua ideia de liberdade, um dos vetores do seu atualíssimo tripé: liberdade, igualdade e fraternidade. O facto, entretanto, é que a maioria dos que hoje se auto-denominam liberais apenas valoriza o aspeto político do conceito de democracia, esquecendo-se dos demais. A democracia tende, assim, a ser entendida, única e redutoramente, como um conjunto de direitos e liberdades políticas, máxime os de votar periodicamente, em condições de igualdade formal, para escolher os governantes. A igualdade social, para não dizer material, e a fraternidade, duas invenções do iluminismo, são consideradas pelos novos liberais "coisas do comunismo"..Diga-se, por conseguinte, que a democracia é - tem de ser - uma construção permanente. Não basta defender os direitos e liberdades políticas, ignorando a necessidade de lutar igualmente pela justiça social, a solidariedade e a participação popular. Pior ainda, opondo-se a essa necessidade imperiosa em nome de um conceito abstrato de liberdade e de outros que lhe são correlatos, tais como "meritocracia", que mal escondem os interesses de classe dos seus defensores. A tais conceitos, junte-se a receita neoliberal com que as classes globalmente dominantes instrumentalizam os grupos subalternos: o empreendedorismo. Sem negar o sucesso individual de uns quantos, a "uberização da economia" aí está, para evidenciar toda a perversidade desse novo sonho capitalista..Para evitar equívocos, reconheça-se um facto histórico: a tentativa de encontrar um modelo alternativo ao capitalismo fracassou até ao momento. Isso aconteceu, entre outros fatores (guerra fria, etc.), porque o chamado "socialismo real" desprezou totalmente os direitos cívicos e políticos dos indivíduos. Qualquer tentativa de repensar e reformular uma agenda progressista global tem de começar por reconhecer isso..O aprofundamento da democracia tem de ser uma bandeira das forças progressistas. Não só do ponto de vista político, defendendo formas de participação popular e comunitária que vá além do exercício dos direitos políticos formais, mas também do ponto de vista económico e social, priorizando os interesses dos mais necessitados e dos trabalhadores em geral. A luta contra os efeitos perversos da uberização da economia propiciada pela atual forma do capitalismo tecnológico-financeiro parece-me fundamental..O reconhecimento e valorização da diversidade nas sociedades atuais, em praticamente todo o mundo (como estamos em clima de Copa do Mundo, veja-se o perfil da esmagadora maioria das seleções nacionais presentes no Qatar), tem de ser uma bandeira obrigatória das forças progressistas. Essa diversidade é um fator de crescimento. Assim, articular de maneira inteligente e afirmativa a luta de classes e as lutas identitárias parece-me crucial, desde logo, para concretizar os dois vetores do iluminismo ignorados pelo neoliberalismo: a fraternidade e a igualdade..A maior ou menor complacência, consoante os contextos nacionais, dos novos liberais com as forças da extrema direita que crescem em todo o mundo faz-me vaticinar que eles não serão capazes de materializar esses dois elementos, sem os quais a democracia será sempre um projeto incompleto. Como a História tem demonstrado, o fascismo é sempre uma carta na manga da burguesia, quando julga ver os seus interesses ameaçados..Escritor e jornalista angolano e Diretor da revista África 21