Defesa da poesia

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Porquê, se a vida é breve

tantas cousas buscamos?

Para quê terras alheias

por outros sóis candentes?

Quem da pátria sai

a si mesmo escapa?

Horácio - Odes, II, 16.

(trad. de Jorge de Sena)

Viajar é um caminho para escaparmos a nós próprios, mas, como já avisavam os sábios poetas romanos, é um caminho sem saída, um labirinto sem fim. Para Fernando Pessoa viajar era perder países, ser outro constantemente, mas para ser outro, e até mesmo muitos outros, bastava a Fernando Pessoa a tranquila rotina de Bernardo Soares, já que as autênticas viagens fazem-se na nossa mente e não nos nossos passos. E Pessoa, consciente disso, revolta-se contra o cárcere do Ser, que nunca nos deixa verdadeiramente sair de nós.

Pascal dizia que toda a infelicidade humana vem de não conseguirmos estar sempre no mesmo lugar. Mas podemos até viajar à volta do nosso quarto, que nunca escaparemos da pátria que somos. Quem nos fez é quem nos limita, mesmo que sejamos nós mesmos quem construiu os muros da nossa prisão.

Se a poesia é uma viagem sem destino, um voo sem pássaro dentro, como dizia Casais Monteiro, sabemos que com ela a nada escapamos, pois por ela damos o peito às balas e nela enfrentamos o tempo.

O que procuramos ao escrever poemas? O poeta António Carlos Cortez diz-nos que o poema é o palco onde se gravam as cenas vivas da memória. Procuramos então no poema a fuga à prisão do tempo, que nos muda até mesmo a própria mudança, como ensinou Camões. Essa fuga faz-se cristalizando os momentos de vida e de experiência no poema e assim pensamos escapar, além da pátria, ao tempo.

Mas o que pedimos ao poema é também um ato de resistência ao nivelamento da língua pela banalidade vulgar e à nossa própria instrumentalização pelos manipuladores da língua. Se da pátria, que é a língua, não podemos escapar, se a mudança das coisas acompanha irreversivelmente o declinar da nossa vida, nós erguemos o poema como as crianças na praia tentam conter o mar com barreiras de areia molhada.

No mundo que vemos nascer, todas as barragens contra a humilhação não serão demais. A viagem dos poemas, sempre condenada à partida, enfrenta todas as humilhações e desastres com o orgulho de quem proclama a grandeza do ser humano, por dentro mesmo da maior miséria moral. Pois, como dizia Hoelderlin, nós caminhamos radiosos sobre a nossa miséria.

E como cresce a miséria do mundo!

Diplomata e escritor

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