Debater o litígio de massa (no Brasil e na Europa) é preciso

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O sistema de justiça do Brasil (como o de Portugal) é tomado por observadores externos como lento e ineficiente. Parte desse fenómeno deve-se, certamente, a fatores estrturais. Mas o que muita gente não tem noção é que se deve também, em boa medida, a um uso abuso ou mesmo predatório desse mesmo sistema de justição.

Como se lê em documentos muito recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Brasileiro, órgão cimeiro do governo judiciário no Brasil, o abuso traduz-se em demandas “sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras”. Há vários exemplos de condutas que podem configurar litigância abusiva, tais como o ajuizamento de ações em comarcas distintas do domicílio da parte autora (conhecido como fórum shopping), pedidos padronizados de dispensa de audiência preliminar ou de conciliação; a distribuição de ações judiciais semelhantes, com petições iniciais genéricas, que se distinguem apenas em relação aos dados pessoais da parte autora, a concentração de um grande volume de demandas sob o patrocínio de poucos advogados, e a atribuição de valor aleatório e inexplicavelmente alto à causa.

No Brasil, sabe-que pode ser desafiador para o juiz identificar e lidar com ações abusivas e, portanto, está em curso adoção de medidas que dotem o sistema de defesas contra essas ações: (I) a realização de audiências preliminares para verificar a iniciativa, o interesse processual e a autenticidade da postulação, (II) o fomento do uso de métodos consensuais de resolução de conflitos, (III) a reunião das ações no foro de domicílio da parte demandada, (IV) o julgamento em conjunto de ações que guardem relação entre si, e (V) quando forem identificados indícios de captação indevida de clientes, a comunicação à Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Por fim, no tocante às medidas preventivas, a norma estabelece a necessidade da integração de bases de dados e sistemas de controle processual entre tribunais para que seja possível a identificação de padrões similares de atuação e processos iguais. Recomenda-se também o monitoramento da concentração de demandas promovidas pela mesma parte ou pelos mesmos profissionais.

O CNJ está particularmente empenhado em acentuar o combate à litigância predatória que, além de afetar o Poder Judiciário, impacta inúmeros setores da economia, como o bancário, de telecomunicações, seguradoras, planos de saúde, aviação, entre outros.

A título de exemplo, no caso do setor bancário, a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) realizou um estudo que demonstra que aproximadamente 300 mil ações judiciais movidas contra 8 instituições financeiras foram identificadas como ilegítimas. Ao analisar dados de quatro grandes bancos, o estudo demonstrou que mais de 40% das ações ajuizadas eram presumivelmente ilegítimas, na medida em que 99% dos casos apresentavam petições iniciais genéricas, assinadas por um pequeno grupo de advogados, com pedido de dispensa de audiência de conciliação. Estima-se que o gasto com essas demandas totalizaram mais de R$ 500 milhões.

Outro exemplo relevante é o setor de aviação civil. De acordo com a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), o Brasil registra 5.000 vezes mais processos judiciais que os Estados Unidos. Isso resulta em uma proporção de uma ação para cada 227 passageiros no Brasil, em contraste com uma para cada 1,2 milhão nos Estados Unidos. Outro dado impressionante é que cerca de 10% dos aproximadamente 400 mil processos movidos no país foram ajuizados por apenas 20 advogados ou escritórios especializados1. Esse cenário evidencia a judicialização extrema e o abuso do direito de ação, que, no caso do setor aéreo, pode ser impulsionada ainda por aplicativos que identificam problemas em voos e incentivam os passageiros a entrarem com ações pleiteando indenizações. Além dos aplicativos, startups têm surgido para comprar direitos de litígio de passageiros contra companhias aéreas, ajuizando numerosas ações padronizadas, o que certamente não induz a melhora dos serviços, nem acarreta maior proteção dos consumidores.

Curiosamente, enquanto o Brasil enfrenta os desafios decorrentes de uma explosão de litígios de massa, que estão hoje sob o olhar atento do CNJ, empresas brasileiras estão sendo chamadas a litigar em território europeu, sob o argumento de que não há instrumentos jurídicos eficazes no Brasil para a proteção de direitos coletivos.

Um exemplo é o caso da ação indenizatória oriunda do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana. Apesar de a Samarco ser uma empresa brasileira, o Tribunal de Apelação da Inglaterra entendeu cabível prosseguir em julgamento de ação ajuizada naquele país por vítimas brasileiras contra a BHP Inglaterra, controladora da BHP Brasil, detentora de 50% das ações da Samarco. O argumento do Tribunal foi o de que o direito processual brasileiro não dispõe de mecanismos tão adequados quanto os do direito inglês para processar casos de danos coletivos. Segundo o Tribunal britânico, as ações civis públicas e os litígios pulverizados no Brasil não seriam alternativas aptas a garantir o ressarcimento dos atingidos pela tragédia.2

Há poucos dias, foi assinado acordo entre a BHP, a Vale e os governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo, prevendo o pagamento de mais de R$ 160 bilhões para reparação dos danos públicos e privados causados no desastre de Mariana. A homologação do acordo caberá à Presidência do STF, que conduzirá procedimento de solução consensual, uma vez que o caso envolve potencial conflito federativo. O STF participou de acordo para resolver um dos mais icônicos casos de litígio de massa no Brasil, quando homologou, em 2018, o chamado acordo dos planos econômicos que, até a data de hoje, beneficiou mais de 120 mil poupadores em 100 mil processos ajuizados contra diversas instituições financeiras.

Na Europa, o tratamento dos litígios de massa também é tema recentemente posto em debate. Em 2020, o Parlamento e o Conselho Europeus editaram a Diretiva (UE) 2020/1828, unificando os procedimentos que tratam de ações coletivas. A Diretiva prevê que todos os países da União Europeia devem dispor de mecanismos para tratar ações de massa, de modo a promover o acesso satisfatório dos consumidores à justiça e se evitar a litigância abusiva.

Atento ao debate mundial sobre os litígios de massa, o Fórum de Integração Brasil Europa (FIBE) promoverá o evento “Impactos Econômicos e Sociais dos Litígios de Massa”, a ser realizado em Lisboa, nos dias 28 e 29 de novembro. O evento reunirá especialistas internacionais para discutir os temas da litigância de massas no Brasil e no exterior: os instrumentos judiciais disponíveis para tratamento dos litígios de massa, as soluções consensuais que podem ser aplicadas aos conflitos de massa, a quantificação do dano de massa, o financiamento dos custos processuais de litígios por terceiros e o fórum shopping.

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