Antes de chegar a Querença para participar na quinta edição do FLIQ – Festival Literário Internacional, da Fundação Manuel Viegas Guerreiro seguimos o serpenteado das curvas que anunciam o Caldeirão na transição do barrocal para a serra, que se espraia nos cabeços sucessivos de um verde outonal, marcados pela mata mediterrânica pontuada pelas alfarrobeiras, oliveiras e figueiras. Sentimos assim os grandes navios em terra. A cada passo, os cartazes com os desenhos inconfundíveis de José Carlos Fernandes anunciam o acontecimento e a homenagem a Lídia Jorge. Levamos na memória Vilamaninhos e vimos partilhar ideias sobre uma obra viva que hoje anima estes lugares. A saudosa herança de Luís Guerreiro está bem ativa, continuada pelo entusiasmo de João Silva Miguel.Conheci Manuel Viegas Guerreiro e o seu magistério permite-nos compreender uma identidade aberta e multifacetada, feita de melting pot como Lídia Jorge recordou nas suas palavras proferidas em 10 de Junho. Falo da ideia de Descobrimento e atribuo-lhe três sentidos: ir ao encontro do que desconhecemos, do outro e da diversidade, procurar quem somos, e desenvolver a dimensão universal da dignidade humana. E releio Lídia Jorge no seu Contrato Sentimental (2009): “Em Portugal desde o final do século XVI se avolumava a ideia messiânica do viajante salvador. Para nos salvar de apuros, sempre vinha a caminho o nosso Godot antes de o ser, aquele que abalava de longe, embrulhado num manto de transcendência para nos dar de mão beijada o que não éramos capazes de encontrar por nós próprios. Tendo-nos recebido com esse mito às costas, a Europa Comunitária acabou por ser o nosso D. Sebastião desencarnado. Feito de obrigações, normas, regulamentos, relatórios, datas. (…) Ela colocou-nos todas essas exigências sobre a mesa, e convidou-nos a sermos nós próprios, confrontados com as nossas esperanças e incapacidades, gerindo-nos como um povo autónomo embora não sozinho”.Para além de uma ciclotimia, que Eduardo Lourenço diagnosticou, importaria considerar que não somos nem piores nem melhores que outros, somos nós.E Lídia prosseguia: “Quando entramos em dificuldade agitamo-nos perante os olhos de todos, não podendo mais sonegar a verdade. Agora não nos escapamos mais de nós mesmos. Aquela mitologia de transferência de responsabilidade para o passado, para o lado, para o futuro, para o invasor, o traidor, esse subterfúgio acabou. Se a causa existe, existe entre nós. Esse banho de realidade pode continuar a causar-nos bastantes engulhos, mas para já está a desenhar-nos um novo traçado para um novo destino. Daqui para diante o caminho do futuro tem de visar a autonomia e a responsabilidade, se quisermos continuar a desfrutar da parceria. Mesmo que daqui a vinte anos ninguém mais se lembre de como foi o início”. E recordamo-nos em Os Memoráveis da pergunta sacramental na madrugada libertadora : “Quem desenhou o plano e comandou as movimentações a partir da Pontinha? Nem eu, nem ele, nem nós, nem vós. Foram eles, os cinco mil”, contra todas as tentações dos cultos do eu…E depois desse dia de boas lembranças em Querença, onde vontade e esperança se associam, partimos para Portimão a celebrar Nuno Júdice no Museu da Cidade com a palavra poética ligada naturalmente às artes visuais e aos grandes museus – porque sobrevive “Pedro, lembrando Inês”… Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian