De que lado estamos?

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Estamos a entrar no tempo da clarificação: quem quer, verdadeiramente, fazer tudo pela soberania e integridade territorial da Ucrânia? Quem está disposto a ceder princípios e valores em nome duma suposta “paz” que poderá, no final do dia, significar uma vitória clara do agressor?

Zelensky tem sido criticado pela falta de viabilidade de alguns pontos do seu “Plano para a Vitória”. Esse é a parte mais fácil. Mas haveria alternativa para quem está a ser invadido pelo maior país do mundo?

A 5 de dezembro de 1994, o Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança proibiu a Rússia, o Reino Unido e os EUA de ameaçar ou usar qualquer força militar ou coerção económica contra a Ucrânia (bem como contra a Bielorrússia e o Cazaquistão), “exceto em legítima defesa ou de outro modo em concordância com a Carta das Nações Unidas”. Na sequência dessa garantia, ucranianos, bielorrussos e cazaques desistiram das suas armas nucleares e entregaram-nas à Federação Russa.

No caso da Ucrânia, Kiev dispunha, na altura, do terceiro maior arsenal nuclear do mundo (mas não tinha os códigos de lançamento). No primeiro ponto desse memorando podia ler-se: “A Ucrânia faz isto desde que respeitadas a independência e a soberania e as fronteiras nela existentes.” Lido aos olhos de hoje, seria cómico se não fosse trágico.

Há 971 dias, a Rússia de Putin rasgou em definitivo o que se tinha comprometido nesse memorando e iniciou a invasão em larga escala da Ucrânia. Zelensky colocou, no seu Plano para a Vitória, a necessidade de entrar na NATO como ponto 1. Recebeu, até agora, mais reticências do que garantias em relação às reais possibilidades sobre se isso poderá mesmo acontecer - e quando.

Sem a dissuasão nuclear da Aliança Atlântica, com o risco sério de Trump ganhar daqui a duas semanas e optar por acordos diretos com Putin, passando por cima dos princípios fundamentais da relação transatlântica, como poderá Kiev acreditar num eventual acordo de congelamento da guerra? Qual é a dúvida que tal levaria a uma espécie de rendição, com uma primeira fase de cedência dos territórios ocupados e uma futura agressão russa estendida a outras geografias?

A hora da verdade está a chegar: não pensem que é só para a Ucrânia. É mesmo para toda a Europa.

Que países da UE e da NATO (Áustria, Chipre, Irlanda e Malta fazem parte da UE, mas não da NATO; Noruega e Turquia são aliados europeus da NATO, mas não estão na UE) vão querer alinhar na “paz miserável” que Trump, Putin, Órban, Xi e Lula se preparam para impor à Ucrânia?

Será o primeiro grande momento de risco de divisão europeia. Quase mil dias depois da invasão não-provocada, criminosa e ilegal da Rússia à Ucrânia, a coesão europeia foi, até agora, bem superior à que, inicialmente, se imaginava. O apoio a Kiev tem-se mantido forte, apesar do cansaço, apesar das “nuances”, apesar, até, das mudanças políticas ocorridas em vários estados europeus.

Mas a perspetiva de um regresso de Trump e os sinais crescentes de que isso significará mesmo o final do apoio americano à Ucrânia mudam quase tudo.

Propaganda e desinformação

Dois anos e oito meses depois do início da invasão, o risco que a Rússia imperial representa para a Europa continua a não ser evidente para muitos espíritos europeus. Mesmo com os avisos de relatórios da Defesa alemã, que apontam para um arco entre quatro a oito anos até a uma real capacidade de Moscovo encetar nova invasão, desta vez em espaço NATO.

Andrey Kurkov, escritor ucraniano, lançou um aviso preocupantemente certeiro, na passagem por Óbidos: “É possível ocupar um país sem usar uma arma, mostrar quem é o inimigo e as pessoas acreditarão, porque é possível falsificar provas. A propaganda e desinformação que são provavelmente tão perigosas como os mísseis e as armas nucleares, porque são bem produzidas.”

Atentemos ao que diz o general Chris Cavoli, comandante supremo aliado da NATO: defende mais despesa com a Defesa face a uma “Rússia mais forte”. Cavoli, em entrevista ao semanário alemão Der Spiegel, acredita que os países membros da Aliança Atlântica vão perceber que destinar 2% do PIB às despesas com a Defesa não será suficiente. “É verdade que a Rússia sofreu perdas na Ucrânia, perdas bastante pesadas, mas está a aprender com a guerra. As Forças Armadas russas estão a aprender, a melhorar e a aplicar as lições aprendidas com a guerra. No final da guerra ucraniana, seja como for, as Forças Armadas russas serão mais fortes do que são atualmente. Estas forças estarão na fronteira da nossa aliança. Serão comandadas pelas mesmas pessoas que já nos veem como inimigos atualmente e que estarão bastante zangadas com a forma como a guerra decorreu. Teremos, portanto, um adversário com capacidades reais, massa e intenções claras. É por isso que temos de estar preparados e precisamos de forças que possam fazer-lhe frente.”

Cavoli insiste: “Isto significa que todos os membros devem aumentar rapidamente as suas despesas com a Defesa. Todos os parceiros da NATO compreenderão que 2% não é suficiente quando apresentarmos as necessidades militares específicas de cada Estado. Para mim, 2% é o mínimo. Mas trata-se de uma decisão política.”

A invasão russa da Ucrânia demonstrou a importância da defesa aérea, algo que não era previsível há apenas alguns anos. “Quase todos os países do mundo podem agora construir drones modernos e até mísseis de cruzeiro de longo alcance. Temos de reagir a isto e rapidamente.”

E quanto ao risco de o Exército russo vir a mover-se com ainda maior agressividade para Ocidente, num futuro não muito longínquo: “O Exército russo é tudo menos estático. Pelo contrário, estão a desenvolver-se rapidamente. Temos de estar atentos a tudo isto quando elaborarmos os nossos planos militares para os próximos anos, de modo a dissuadir a Rússia de forma credível.”

Alinhamento autocrático é cada vez mais evidente

A Ucrânia e a Coreia do Sul dizem ter evidências claras. Os EUA não desmentem, mas dizem quem ainda não têm provas que o possam confirmar. A verdade é que as suspeitas são cada vez mais fortes, no sentido de que a Coreia do Norte - que já ajudava a Rússia na agressão na Ucrânia com munições e mísseis - pode já estar também envolvida, enquanto Estado, com cerca de dez mil tropas no terreno. Aparentemente, com o objetivo de tentar expulsar os ucranianos de Kursk.

Zelensky procura reação forte dos outros países ao envolvimento norte-coreano na guerra: “Sou grato aos líderes e representantes de Estados que não fecham os olhos e falam francamente sobre isso. Esperamos uma reação normal, honesta e forte de nossos parceiros sobre isto.”

O alinhamento autocrático é cada vez mais evidente: a Rússia, potência nuclear, tem o apoio do Irão - que pode estar perto de ser uma potência nuclear -, da China (potência nuclear e rival dos EUA na corrida pela maior economia do mundo) e agora também da Coreia do Norte, outra potência nuclear.

De hoje até quinta, em Kazan, a Rússia vai acolher a Cimeira dos BRICS, com um convite a um país europeu que gostava de entrar na UE e faz parte da lista de parcerias da NATO, a Sérvia. Xi Jinping vai lá estar. Lula só não estará porque teve “um acidente doméstico”.

E nós, no Ocidente, vamos continuar a impor mais freios que garantias de segurança à Ucrânia? Ainda há quem se confunda sobre quem está a invadir quem?

Vamos todos, aqui no Ocidente, fazer para nós próprios esta pergunta fundamental, nesta hora crítica, em que as decisões difíceis se aproximam: de que lado estamos?

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