Atrevo-me a dizer que perdem muito os portugueses que viajam de carro até Madrid pela fronteira do Caia e aceleram sempre até à capital espanhola. Estão a atravessar a Extremadura, onde está a Alcáçova de Badajoz, o Teatro Romano de Mérida, o coração medieval de Cáceres, o castelo de Trujillo, o mosteiro de Guadalupe ou as praças irmãs de Zafra, terra conhecida como a pequena Sevilha. Também se come bem por ali, dos pratos que têm muito em comum com a gastronomia do Alentejo, ao presunto de porco preto, criado a bolota, e à torta del casar, saboroso queijo. Também se produz bom vinho, a experimentar com moderação num almoço a caminho de Madrid, ou num fim de semana dedicado ao património e à natureza, se a capital espanhola puder esperar um pouco, ou até ficar para outra oportunidade.Morreu ontem um homem que se tornou de certa forma um rosto da Extremadura, Guillermo Fernández Vara. Médico, nascido em Olivença, Olivenza para os espanhóis desde a Guerra das Laranjas no início do século XIX, foi em duas ocasiões presidente do governo regional, sempre pronto a defender os interesses de uma região que é das mais desfavorecidas de Espanha, também sempre favorável a laços fortes com Portugal. Entrevistei-o algumas vezes, incluindo em Mérida, a capital extremenha, e sempre destacava a relação íntima entre os portugueses e os espanhóis que viviam na Raia, uns morando num país e trabalhando no outro, outros atravessando a fronteira para fazer negócios, em certos casos para visitar a família, porque são comuns os casais luso-espanhóis. Tinha também muito orgulho em dizer que nas escolas se aprendia português. “Temos quase 20 mil jovens a aprender português na Extremadura”, foi o título de uma entrevista ao DN em 2018.O primeiro-ministro Pedro Sánchez referiu-se a Fernández Vara num artigo no El País, chamando-lhe “extremenho de pura cepa e um militante orgulhoso da sua terra”, e isso fez-me recordar como, embora do PSOE como Sánchez, o político extremenho chegou a enfrentar o líder socialista, quando lhe parecia que os interesses da sua região, e as suas convicções, estavam em causa. Também a atual presidente do governo autónomo, María Guardiola, do PP, conservador, prestou homenagem ao antecessor, que cumpriu as suas responsabilidades públicas “com honra, com esforço e com um trato próximo que sempre recordaremos”Os perfis publicados na imprensa destacam o “estilo tranquilo e dialogante”. Quando em Portugal, não há muito tempo o tema da soberania de Olivença voltou a ser falado, Fernández Vara reagiu como a tal calma que lhe era associada, dizendo que os oliventinos “sentem-se filhos de Espanha e netos de Portugal”, acrescentando que “as fronteiras de ontem são hoje as pontes que constroem a Europa a que juntos pertencemos”. O homem que esteve ao todo 12 anos à frente do governo da Extremadura, numa entrevista mesmo antes de sair do cargo em definitivo, relembrou o muito que evoluiu a Extremadura nas últimas décadas, graças às transformações que se seguiram em toda a Espanha após a morte do general Franco, em finais de 1975: “A taxa de insucesso escolar estava 50% acima, em comparação com a média espanhola no início da democracia. Hoje, é de 10%, dois pontos percentuais abaixo da média. Estamos melhor, e a educação é o que muda as pessoas”. Foi um pouco sua obra também, e isso ninguém discute.Recordo aqui Fernández Vara, um espanhol que gostava de Portugal - e que morreu depois de longos meses a lutar contra o cancro -, pela sua combatividade política, pelo seu empenho na defesa da Extremadura e pela ideia de Espanha, e pelo seu interesse em aproveitar as oportunidades que a adesão em simultâneo à União Europeia de duas jovens democracias, em 1986, ofereceram a espanhóis e portugueses. Mas a notícia da morte deste político extremenho, que esta segunda-feira faria 67 anos, também nos deve reforçar a convicção na importância de tirar o melhor partido, sem desconfianças históricas exacerbadas, da vizinhança com a Espanha, sobretudo ao longo da fronteira, seja a Extremadura com o Alentejo, a Andaluzia com o Algarve ou a Galiza com o Minho, e por aí fora.No caso especial da Extremadura, é uma região espanhola tão ligada a Portugal que tem mesmo uma delegação permanente em Lisboa, num constante esforço de relacionamento que vai dos negócios à educação, e até à cultura, basta pensar que todos os anos o Festival Internacional de Teatro Clássico de Mérida vem apresentar-se a Lisboa, procurando o público português, afinal aqui tão próximo.Diretor adjunto do Diário de Notícias