Da lenda à realidade: a fraqueza dos ditadores

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Poucos são os líderes que definem a era na qual governaram. E, no entanto, pelas piores razões é esse o feito singular de Vladimir Putin. Ainda que, como escreve Michel Eltchaninoff ele “nunca tenha querido livrar-se da sua origem soviética na década de 1990 e no início da de 2000 vestiu-se de liberal. Apresentava-se como um democrata que queria ajudar o seu país a atingir padrões ocidentais”. Os líderes ocidentais, por ingenuidade ou amarrados à Realpolitik ficaram tranquilos e cometeram uma sucessão de erros que permitiram ao novo czar surpreende-los e jogar com a sua tibieza.

No entanto três acontecimentos - a resistência ucraniana, a consistência do apoio ocidental, não obstante os cavalos de Troia e o recente derrube do sanguinário regime de Assad na Síria - mostram-nos que os adversários do Ocidente são tantas vezes mais fracos do que a percepção que de si criam. Num artigo publicado no Washington Post, Fareed Zakaria sublinhava isso mesmo. “Recorde-se como, durante décadas, os Estados Unidos sobrestimaram a força da economia e das forças armadas soviéticas, a certeza com que afirmaram que Saddam Hussein tinha armas de destruição maciça e os frequentes sustos em torno de grupos militantes islâmicos como a Al-Qaeda e, mais recentemente, o Hezbollah. No entanto, com o passar do tempo, o que muitas vezes se torna evidente é que estes governos e grupos são repressivos, corruptos e disfuncionais - atributos que não os ajudam a prosperar no mundo moderno”.

O derrube do carniceiro de Damasco dá mais uma machadada no mito do poderio russo. Putin terá lido seguramente Dostoiésvki e Os Demónios. Nessa obra um dos personagens explica a chave do sucesso na política: “o essencial é a lenda”. Para obter e manter o poder aplica-se o mito à realidade à custa de violência. A Síria era o último grande Estado cliente da Rússia no Médio Oriente. Moscovo gastou enormes recurso financeiros e militares apoiar Assad na última década. “Perder essa posição é tornar-se naquilo a que Barack Obama desdenhosamente chamou à Rússia: uma potência regional”, nota Zakaria.

Na verdade, a Rússia enfrenta dificuldades no espaço pós-soviético, foi incapaz de defender a Arménia da agressão do Azerbaijão e perde o ascendente que tinha em África porque os ditadores e putchistas que protegia tem agora dúvidas acerca da solidez dessa proteção. No campo económico os sinais de convulsão são cada vez mais óbvios e mesmo na Ucrânia o “convite” a tropas norte-coreanas e o ameaça constante com o uso de armas nucleares são sintomáticos desse nervosismo. Noel Foster, do Naval War College, salienta que o desespero de Moscovo é visível no aumento dos salários e dos bónus que tem para oferecer aos recrutas: “A partir de julho de 2024, os recrutas de Moscovo receberam um bónus de alistamento de 21.000 dólares e salários que ascendem no total a pouco menos de 60.000 dólares no seu primeiro ano de serviço, ganhando efetivamente mais por mês do que os soldados rasos que se alistaram no exército dos EUA na mesma altura.”

Logo após o derrube de Assad, Donald Trump escreveu no X que Rússia estava enfraquecida, que 600 mil soldados russos foram mortos ou feridos e acrescentou, o que não é de somenos, que é o momento de Putin agir e que a dificuldade em chegar a um cessar fogo se deve à Rússia e não à Ucrânia.

O que a história nos ensina é que todos os ditadores são fracos. O 24 de Fevereiro de 2022 e o 7 de Outubro de 2024 criaram uma espécie de fila de dominós de carniceiros e ditadores, um após outro têm vindo a ser derrubados. Cairão Khamenei e Putin? As probabilidades nunca foram maiores.

Voltemos a Dostoiésvki o romance termina os revolucionários a dispersar-se por vergonha e medo e com o suicídio do herói. O real, na literatura, vinga-se da lenda.

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