Da calçada da Glória aos sistemas críticos do Estado

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O acidente recente no Elevador da Glória, para lá da consternação mediática e do simbolismo para a cidade de Lisboa, expôs uma falha mais profunda do que um simples erro técnico ou humano: a erosão do conhecimento operacional e estratégico sobre equipamentos históricos ou sistemas complexos, específicos e com pouca procura de competências especializadas no mercado.

Este episódio serve de ponto de partida para uma reflexão que há muito está por fazer no sector público. Onde termina a utilidade da subcontratação de serviços (outsourcing) e onde começa o risco de se perderem competências críticas?

Em muitos organismos do Estado e também em grandes organizações privadas, o outsourcing tornou-se o pão nosso de cada dia. É uma prática consolidada e até necessária, para serviços e soluções que não exigem adaptação estrutural ao negócio, nem carregam qualquer singularidade institucional.

Um bom exemplo são os sistemas de Gestão de Recursos Empresariais (ERP), modulares, padronizados, com boas práticas de mercado e ciclos de atualização previsíveis. São por natureza soluções tecnológicas vulgarizadas em muitos mercados. Pode-se (e deve-se) externalizar a sua gestão, suporte ou até mesmo operação completa, através de contratos com Acordos de Nível de Serviço (SLA) bem definidos. O risco é baixo e a concorrência no mercado garante eficácia e preços competitivos.

Contudo, o mesmo raciocínio não pode ser aplicado aos sistemas de informação altamente específicos do Estado como o Sistema de Informação da Segurança Social (SISS), o Registo Nacional de Utentes (RNU) ou os sistemas que sustentam a Autoridade Tributária e Aduaneira. Estes sistemas não só operam sobre regras legais em constante mutação, como são moldados por processos administrativos únicos, com lógicas de negócio profundamente enraizadas no contexto nacional.

O problema surge quando se tenta aplicar ao outsourcing destes sistemas a mesma lógica economicista dos ERPs. Numa tentativa de simplificação, alienação de responsabilidades e redução de custos a curto prazo, o Estado tem ao longo das décadas subcontratado equipas e serviços críticos, quase sempre através de adjudicações diretas ou contratos sucessivos com fornecedores que mantêm o conhecimento de forma opaca e pouco transferível.

Em muitos casos, os contratos são renovados com cláusulas de continuidade e fidelização implícitas, onde a dependência tecnológica se disfarça de eficiência. O outsourcing transforma-se assim num imperativo de longo prazo sem estratégia de saída. E isso é insustentável, não apenas financeiramente, mas estrategicamente.

O futuro exige uma inversão de lógica. Não se trata de eliminar o outsourcing, mas de distinguir claramente entre aquilo que pode ser externalizado sem perda de valor interno e aquilo que deve ser estrategicamente internalizado (insourcing), com contratos de médio e longo prazo focados na transferência de conhecimento, na capacitação interna e na reconstrução de equipas com literacia profunda sobre os sistemas que operam.

Os modelos híbridos, onde fornecedores externos trabalham lado a lado com equipas internas especializadas, são uma alternativa inteligente. Mas para que funcionem, é necessário um compromisso claro com a gestão de competências, com formação contínua, planos de sucessão e investimento numa cultura digital pública que não dependa exclusivamente do mercado externo.

Voltando ao Elevador da Glória, verifica-se que não foi apenas um acidente. Foi uma metáfora perfeita para o que acontece quando deixamos a memória técnica e o conhecimento de sistemas críticos escapar por entre os dedos. Porque a gestão do conhecimento especializado num outsourcing padrão, raramente vem incluído no contrato ou em manuais de instruções.

Especialista em governação eletrónica

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