A edição é de Graça Videira Lopes, de há muito a mais reconhecida especialista em literatura satírica portuguesa, sobretudo no que concerne à poesia medieval. Poeta e ensaísta, Graça Videira Lopes oferece-nos aqui um livro que faltava e que versa sobre o riso, o amor e a política no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende. Como escreve na introdução, «a poesia que se fez em Portugal na época das grandes viagens marítimas de descoberta e conquista, ou seja, desde meados do século XV ao fim da primeira década do século XVI, permanece, em grande parte, pouco conhecida dos leitores actuais.» É esse o objectivo central desta antologia, observando-se que o chamado Cancioneiro Geral, ou «de Resende», é, sem dúvida, um dos gramdes monumentos da cultura portuguesa do período da Expansão e, justamente por sê-lo, se nos oferece como documento – o mais fidedigno – literário onde a sátira, a expressão amorosa e a política foram assunto de literatura. Não se esqueça, de facto, o seguinte: cabe ao Cancioneiro organizado por Garcia de Resende ser o repositório de um tempo social e histórico que, em bom rigor, é do tempo, do próprio tempo daquilo sobre que trata. A epopeia de Camões, de 1572, di-lo com razão Graça Videira Lopes, fala de sucessos acontecidos mais de um século antes, sendo que as falas, as disputas ou as polémicas de finais do século XV e inícios do século XVI, é no Cancioneiro Geral que as vamos encontrar. Camões teve o sortilégio de ler à distância (e de inventar à distância) um tempo que não foi o seu, mas Resende teve o gesto inaugural (é ler-se o prólogo) de assentar em letra de forma o que, nesses tempos vertiginosos, poderia facilmente ter ficado absolutamente disperso.Nesta edição encontraremos composições de vária índole. Porém, é a expressão amorosa o que, desde logo, muitos irão reconhecer. Poemas como o célebre «Senhora partem tão tristes/ Meus olhos por vós, meu bem», de João Roiz de Castelo Branco, onde se explora um tópico – os olhos – de funda reminiscência clássica e stil novista (de Catulo a Petrarca); poemas de Bernardim Ribeiro e de Sá de Miranda (ainda antes da revolução «modernista» do «dolce stil nuovo», que o introdutor do soneto importará da sua viagem a Itália e da sua leitura dos poetas espanhóis); poemas de circunstância, trovas de «proveito e exemplo», composições políticas e também lirismo erótico, tudo isto será, no seu conjunto, «cousas de folgar e gentilezas», isto é, coisas que são «o mais eloquente testemunho do ambiente vivo, complexo e contraditório das cortes portuguesas da época.» (p.12). Um dado que, sendo de depreender, não deixa de ser importante: as cortes portuguesas gostavam de poesia, mesmo se, como refere a antologiadora, a entendiam como forma de divertimento. Poesia de gozo, de jogo, poesia jocosa, sem dúvida, mas poesia onde a repreensão e a crítica não eram menos importantes. Os cerca de 300 autores que integram o Cancioneiro Geral provam como, por aqueles tempos, a arte de trovar era igualmente essencial ao brilho «de um grande príncipe». A técnica poética posta ao serviço desse príncipe, eis o que nesta colectânea fica também patente: as formas cultivadas são a prova de que a poesia era uma «forma pública de engenho», ou seja, «uma forma de socialização» onde o riso, o folgar, bem como o motejar (fazer poemas a partir de mote e escrever a respectiva glosa), era adestramento pedido a qualquer cortesão. E note-se: motejar, que inicialmente tem como sentido responder a um mote, ou glosar um mote, passará, depois, a significar, «zombar», o que reflecte essa simbiose entre a manha do saber fazer versos e a intenção satírica que animava essa intenção.Graça Videira Lopes, chama a atenção para as composições colectivas, numa época em que essa arte parece, escreve, «ser feita por todos»: os poetas das cortes de Afonso V, D. João II e de D. Manuel I e sublinha o facto de ser neste cancioneiro que encontramos a primeira referência ao achamento do Brasil, jocosamente fixado. Outra curiosidade desta poesia, que nasce num ambiente de livre circulação de ideias e de produtos, é que ela evolui para formas ambíguas da poesia. Percebe-se que, à medida que avançamos na leitura desta antologia, há zonas de silenciamento, ou de cuidadosa, ou vigilante mensagem. A partir do reinado de d. João II, os assuntos políticos pedem já que sobre eles se escreva com certa parcimónia, ou em clave mais obscura, ou dificultosa. O perigo de se falar demasiado surge: «As novas de grande peso / não as esperareis de mim / pois sabeis que é defeso / quem está em Almeirim / dizer com que seja preso». Todavia, isto não significa que acontecimentos como o assassinato do duque de Viseu às mãos do próprio rei D. João II não fossem tratados poeticamente (poema do coudel-mor Fernão da Silveira). Serão, é certo, os poemas de teor político, os menos frequentes, mas vale a pena atentar numa composição de Luís de Azevedo, uma das mais antigas da reunião, onde leremos versos bem pouco abonatórios da figura do Infante D. Henrique, o qual teria estado profundamente envolvido na morte de D. Pedro, em Alfarrobeira.Livro essencial e em boa hora publicado com chancela da Assírio & Alvim, viajemos até essa época convulsiva e instigante: o nosso quinhentismo a ser medido pela régua das descobertas. A expulsão dos judeus, nada consensual, mas a par dela o antissemitismo que lemos em Álvaro de Brito Pestana; os versos sobre os alfaiates de Lisboa, muito do que aqui lemos faz-nos confrontar as duas visões da História: a das cortes, de um lado, essa visão oficial; do outro, a visão não oficial. O mesmo se diga para o assunto fulcral desses reinados e aqui plasmado: as Descobertas, a política de expansão. De um lado os versos de D. João de Menezes, e em resposta a estes, os de Duarte da Gama, sem esquecer a carta de João Roiz de Castelo Branco a Antão da Fonseca, «obra-prima de subtileza e inteligência crítica». Quadros vivos da vida de todos os dias, a Lisboa «cosmopolita e multicolor», eis que irrompe destas páginas com singular actualidade.Nota importante: este é um livro impresso, em tempo de precoce desenvolvimento da tipografia em Portugal, apesar de o primeiro livro impresso datar de 1487 (há notícia de livros impressos já na década anterior). O Cancioneiro Geral, agora entre nós, teria tido um precedente: o incunábulo que conteria as Coplas do menosprezo do mundo do condestável D.Pedro, e que Garcia de Resende reedita na sua antologia. Mas fique o leitor ciente de que o modelo de Resende foi Cancioneiro General de Hernando del Castillo; modelo a que Resende faz opor, nesse tempo de competição entre nós e Castela, este documento que é um monumento.