Costas frias

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Quando os portugueses, a 19 de março de 2016, leram a manchete do semanário de maior tiragem no país, poderão ter sofrido um equívoco. "Costa dá luz verde a Isabel dos Santos no BCP", noticiava o Expresso. Para a maioria, a questão terá sido imediata: mas qual deles? António, o primeiro-ministro? Ou Carlos, o governador? Seis anos mais tarde, a pertinência dessa pergunta - ou a invulgaridade desse tempo - regressou à discussão nacional.

O interior do jornal trazia o relato de uma reunião entre o primeiro-ministro e a filha de José Eduardo dos Santos em São Bento, com vista a por termo ao impasse da empresária angolana no BPI, permitindo-lhe entrar no capital do BCP em jeito de compensação. "O governo português autorizou", "o acordo foi dado pelo próprio primeiro-ministro", "Marcelo quis evitar conflito com Luanda", lia-se. O Presidente da República reiteraria que "sem a intervenção de todos - privados, reguladores e políticos - não teria sido possível chegar onde se chegou", ou seja, a um acordo entre dos Santos e os espanhóis do CaixaBank para desbloquear a situação no BPI, coisa que repetiu ipsis verbis nesta semana, seis anos depois, não para defender o papel de Costa, ao contrário do que se queixa o PSD, mas para se defender a si próprio, que teve na banca o seu primeiro grande mergulho presidencial.

Tudo isto, mais do que público, mais do que publicado, leva a que o sururu em torno das memórias de Carlos Costa seja um tanto surpreendente. Então, os senhores não sabiam? Esqueceram-se? Há algo que signifique mais uma apropriação das funções do regulador do que um governo dar "luz verde" e "autorização" à entrada de uma empresária num banco privado?

O modo como ambos decidiram transformar o que era já conhecido num ajuste de contas tratou-se de um mau serviço ao regime e às suas instituições. Carlos Costa acusa o primeiro-ministro de ferir a sua independência, narrando uma conversa em que este lhe terá apontado ser "inoportuno" vetar o nome de Isabel dos Santos para a administração do BIC por ser "a filha do presidente de um país amigo". António Costa não desmente que o diálogo ocorreu, mas antes o argumento apresentado. A inoportunidade teria que ver com a possibilidade de o veto inviabilizar o acordo para a angolana abandonar o BPI.

Ironicamente, a história contradiz os dois. Por um lado, porque Isabel dos Santos não ficaria administradora no BIC e acabaria por vender a sua posição do BPI independentemente disso. Por outro, porque a sua atribulada saída da banca nacional causaria, de facto, mossa nas relações entre os dois países, tendo o MPLA ameaçado bloquear transferências cambiais de emigrantes portugueses (Expresso, 23/4/2016; The Economist, 28/4/2016) em retaliação pelo decreto - recordado há dias por Lobo Xavier ‒ que o governo de Costa avançaria para "desblindar" a posição de Isabel dos Santos no BPI. "Vamos fazer prevalecer o nosso direito de soberania sobre o direito internacional privado", avisava Luanda.

Em nome da verdade é importante recordá-lo, como o é também lembrar que dos Santos cumprimentou o "construtivo envolvimento do governo português em dada fase da conciliação do processo", isto é, antes de Costa preferir as recomendações do BCE às pressões de Angola.

Esse dilema, entre o que Frankfurt via como excesso de exposição da banca portuguesa a capital angolano, por um lado, e a preservação das relações diplomáticas e económicas dos dois países, por outro, cairia no colo de qualquer primeiro-ministro. Costa foi herdeiro de um sistema financeiro frágil, de um regime político comprometido e de um partido - o PS ‒ historicamente acostumado a tratar os bancos por tu. Se era impossível evitar o problema, era obrigatório ter soluções escrutináveis. Se o primeiro-ministro não procurou favorecer Isabel dos Santos em nenhuma circunstância que não a defesa do interesse nacional, a ausência de transparência facilita o levantar de suspeitas.

O pecado original não será tanto o que Costa disse a Costa, mas o que não disse. A resolução do BANIF, comunicada a Bruxelas por carta sem o conhecimento do regulador, é mesmo uma ingerência grave e Luís Marques Mendes não exagera ao falar em abertura de inquérito judicial. O voluntarismo de querer resolver problemas não deve, em nenhum momento, colocar em causa a separação de poderes.

Infelizmente, aconteceu.

Colunista

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