Contradições pós-coloniais  

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Este texto é uma pequena reflexão suscitada pelos textos de Guilherme d’Oliveira Martins e de Aline Hall de Beuvink, publicados no DN no passado dia 19. 

Ambos se debruçam sobre a exposição Complexo Brasil, patente na Fundação Gulbenkian. Sobre este mesmo objeto expõem os dois autores visões opostas. Aline vê  “ódio xenófobo”, num “texto raivoso, cheio de fel”. Guilherme vê um Brasil diverso, mais complexo, onde se cruzam, ao longo da história comum, afeto e raiva, admiração e desprezo recíprocos (que testemunhei nas várias vezes que estive no Brasil, quase sempre conciliando conferências e aulas em universidades com pequenas estadias preguiçosas em locais dos mais belos do mundo). 

Entre estas duas visões, a de Aline afigura-se-me parcial, supondo uma unanimidade adversa ao passado português por parte dos brasileiros. Já a de Guilherme consegue captar, em toda a sua complexidade, encontros e desencontros, sorrisos e lágrimas, as relações entre portugueses e brasileiros. 

Porque na relação entre colonizador e colonizado, seja entre Portugal e o Brasil, entre a Espanha e Cuba, ou entre a França e a Argélia, coexistem sempre dois olhares (amor - ódio, dirão alguns).  O colonizado tende a enfatizar a injustiça colonial: os massacres, as humilhações, a discriminação, o racismo, a repressão da liberdade. O colonizador sublinha os aspetos positivos - a seu ver, claro - da  colonização: o desenvolvimento económico, o aumento de escolas, hospitais e vias de comunicação, a preservação da unidade do Estado.  

Em qualquer relação pós-colonial subsistem, para além de memórias amargas e sentimentos de vingança, momentos de afeto e de cumplicidade entre antigos colonizadores e colonizados, à volta de preocupações, tradições e crenças partilhadas. Por vezes surpreendentes. 

Certa vez, já não recordo em que cidade brasileira, almoçando com um grupo de académicos de várias nacionalidades, no intervalo de um colóquio universitário, a conversa recaiu sobre um tema caro a todos: comida. Um colega brasileiro proferiu solenemente sua declaração de amor ao bacalhau português: “é, sem discussão, o melhor bacalhau do mundo”. 

Impensadamente, optei por esclarecer: “por certo, mas não é português. É pescado nas águas da Noruega”. Incredulidade e indignação: “o colega não brinque com coisas sérias! Quer convencer-me que o bacalhau português não é português mas norueguês?” 

Arrependido, procurei apaziguar a indignação: “sabe, ele é seco e salgado em Portugal. Mas não existe em águas portuguesas desde antes da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil”. Nada convencido, o meu interlocutor preparava-se para ripostar. Fui salvo pela oportuna intervenção moderadora de outro colega brasileiro, substituindo o tema do bacalhau pelo das delícias dos queijos portugueses. 

Mas acredito que o indignado professor ainda hoje acredita comer bacalhau português! 

Antigo presidente do Tribunal Constitucional

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