Contra a barbárie

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cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.

Eugénio de Andrade

Quando cheguei à Índia como embaixador, surpreendeu-me a perceção diferente que os meus interlocutores tinham das relações de força no mundo. Quando lhes repetia que a Alemanha era a mais forte potência dentro da Europa (o que eu na altura acreditava) sorriam os diplomatas indianos e respondiam que só havia duas verdadeiras potências na União Europeia, o Reino Unido e a França, porque só elas dispunham de armas nucleares. Era antes do Brexit e da invasão da Crimeia...

Hoje compreendo como o nosso arreigado eurocentrismo nos levou a dar por adquirido e inultrapassável o equilíbrio de paz no nosso continente, apesar das lições que deveríamos ter aprendido com as guerras na ex-Jugoslávia. Os países extra-europeus vêem o mundo com mais realismo do que nós. A força das armas continua a assegurar mais poder do que a riqueza da economia e do que as próprias relações de interdependência criadas pela globalização. As mentes dos homens vivem noutros territórios, nos sonhos e mitos em que foram educados e no quadro de conceções do mundo que, com alguma ingenuidade, considerávamos ultrapassadas.

A reencenação atual da Guerra Fria tem-se desenrolado para a alegria e o conforto intelectual, tanto dos saudosos de um poder derruído e irremediavelmente decadente (Putin) como dos saudosos de um confronto claro e dicotómico entre o Bem e o Mal, que permita desenhar sobre um mundo de crescente complexidade e multipolaridade um quadro simples e a preto e branco de Democracia versus Autocracia. Não que o ato de força brutal e criminoso, ao arrepio de todas as regras aceites e acordos firmados, que constituiu a invasão da Ucrânia pela Rússia, não deva encontrar a nossa firme resistência e a nossa solidariedade plena com os agredidos. Mas a mentalidade de Guerra Fria e o maniqueísmo moral em vias de se reconstituir, nas relações internacionais como nas opiniões públicas internas, não vão favorecer a Europa e a Democracia, na minha opinião.

O nosso ideal utópico de paz perpétua kantiana veio estilhaçar-se contra esta realidade, que Freud há muito nos lembrou nas suas Considerações sobre a Guerra e a Morte: a guerra e a pulsão de morte vivem em nós para sempre e o mais que podemos fazer é resistir-lhes com todos os nossos instintos de vida e a com a lúcida impiedade da cultura - mas jamais seremos capazes de as conter para sempre.

Estas reflexões melancólicas acompanham para mim um tempo de lutos e de perdas, que nos vem lembrar que a nossa geração está a chegar ao seu fim. Os 50 anos do 25 de abril vão ser comemorados mais pelos nossos irmãos mais novos e pelos nossos filhos do que por nós próprios. Cada geração reinventa o mundo e se reinventa a si própria. Por isso, sem transigir nos princípios fundamentais da decência, da liberdade, da solidariedade social e do respeito pelos outros, devemos nós, os da geração daquele abril, aceitar que o mundo mudou, porque todo o mundo é composto de mudança, e que o olhar sobre nós próprios e sobre a Revolução que nós vivemos possa hoje ser outro, ser diferente e às vezes até nos poder chocar.

Podemos sentir-nos deslocados de uma época para outra, como se fôssemos embaixadores de um outro século junto deste em que vivemos. Uma viagem no tempo com que terminamos as nossas viagens na terra. Um último posto no estrangeiro, diria eu, por deformação profissional.

Mas de nada vale uma velhice azeda e ressentida face ao renovar das gentes da terra e das estações do ano. É com alegria que devemos olhar para as mudanças e com abertura e curiosidade que devemos encarar e confrontar-nos com perspetivas diferentes das nossas. Os 50 anos do 25 de abril, que começámos este ano a comemorar, são um sinal de esperança e uma luz a acender-se contra a barbárie do mundo. Mantenhamos essa luz a brilhar teimosamente contra o horizonte de cidades bombardeadas que alastra sobre nós.


Diplomata e escritor

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