Mais do que um mapa substancialmente reconfigurado, as autárquicas do próximo dia 12 de Outubro poderão ter o condão de nos confrontar com um retrato sociológico muito diferente daquele que tínhamos a pretensão de conhecer. Historicamente dividido entre um norte com maior apego aos bons homens da terra, que prosperavam graças aos calos nas suas próprias mãos, e que, por isso, se assumia mais amigo da pequena iniciativa privada e de uma economia social de mercado com rostos que eram motivos de orgulho, e um sul que, apesar de assimétrico, individualizava as agruras e as tragédias das vidas concretas e paradoxalmente cedia aos encantos abstractos do colectivismo de miséria, o Tejo – exceptuando as lezírias ribatejanas e zonas limítrofes – foi constituindo uma fronteira ideológica quase intransponível.Sendo certo que PSD e CDS não mexiam o ponteiro a sul, não é menos verdade que o PCP nada riscava a norte – e todos pareciam confortáveis com essa delimitação com motivos atendíveis, mas que não gerou mais do que pobreza, exclusão, marginalidade e um certo exotismo com que a margem norte encarava a generalidade dos territórios compreendidos entre Almada e Albufeira. Cruzar a 25 de Abril (e mais recentemente a Vasco da Gama) era o mal necessário para quem quisesse fruir das praias e da gastronomia de um Portugal esquecido, onde até se presumiu poder vislumbrar camelos e do qual demasiada gente com responsabilidades só se recordou quando o Chega a fez perceber que nenhum Comité Central é dono das vontades e dos votos dos portugueses.De igual modo, havia à direita uma convicção inabalável de que o “bom povo” do norte (que, sabemos todos, não designa nenhuma massa homogénea e ortodoxa) não se deixava seduzir pelos cantos de sereia de um qualquer Messias que prometesse tudo a todos, enquanto garantia aos restantes que seriam limpos, purificados e trazidos para o perímetro de uma nova moralidade, ditada e praticada por apóstatas. Um tempo de luz em que a caridade cristã foi convertida em fúria discriminatória, em que compromisso próprio do conservadorismo foi trocado pelo irascibilidade revolucionária e em que o respeito pelas instituições que mediavam conflitos sociais foi substituído pela adição à boçalidade e consequente viralidade oferecidas pelo algoritmo imperscrutável que tudo vê e pouco nos faz ver.Não vindo qualquer mal ao mundo com a progressiva erosão social e eleitoral dos herdeiros de doutrinas que chacinaram milhões e que votaram ainda mais milhões à indigência e à fome, é alarmante que no poder local as mentes totalitárias de esquerda sejam rendidas pelo pior que o regime produziu à direita e pelos sans-culottes pátrios, os quais, recorda-se, mais não têm sido do que armas de arremesso usadas entre os políticos de turno.Entre bifanas e imperiais, declarações estéreis, reportagens frívolas e análises destituídas e/ou comprometidas, cada candidato a qualquer coisa e cada líder dos partidos que (ainda) contam finge não ver o que se passa diante dos seus olhos. Restasse à esquerda moderada um pingo de instinto de sobrevivência – para não dizer juízo – e não perderia um segundo com as cascas de banana que lhe vão sendo postas no caminho pela esquerda folclórica. Houvesse na direita tradicional a dose necessária de pragmatismo, reformismo e a necessária indiferença face à opinião publicada e não estaria tão receosa do que lhe pode suceder a 12 de Outubro ou nos meses subsequentes. O PCP é passado e o Chega já passou. Para melhor ou pior, o país mudou. Saibam os que estão entre uns e outros salvaguardar a nossa maior – talvez única – especialidade: continuar. Foi sempre isso que fizemos. Assim seja, depois de 12 de Outubro. Consultor de comunicação