Continua a haver “homens que nunca foram meninos”
As Canárias estão transformadas numa prisão a céu aberto para crianças e jovens”.
As palavras são de António Morales, o presidente do Cabildo (Governo de ilha) da Gran Canária. Foram proferidas durante uma missão parlamentar que integrei dedicada à situação de menores migrantes não-acompanhados nas Ilhas Canárias.
São palavras duras, mas que retratam com objectividade uma parte da realidade que ali se vive neste momento. Há cerca de 5.500 menores retidos naquelas ilhas sem ser esse o seu destino, nem essa a sua vontade.
Mais dura que aquelas palavras é a realidade das condições em que vivem muitos desses menores.
Dizia-nos um pediatra, numa outra conversa, que grande parte destas crianças e jovens acumula três tipos de problemas: os problemas das vidas difíceis nos seus países de origem, os problemas que tiveram no percurso migratório e os problemas do sistema de acolhimento das Canárias.
Acrescento eu que, além desses problemas, vivem ainda as consequências das políticas migratórias desumanas, de retenção e expulsão de migrantes, promovidas pela União Europeia.
As histórias das vidas curtas dessas crianças e jovens são explicações das longas razões para as migrações. Pobreza, guerra, violência são elementos comuns à generalidade dos relatos. Migrar acaba por ser mais uma saída do que uma opção, até nas palavras de uma criança de 12 anos.
O percurso migratório implicará a navegação em mar aberto, numa embarcação mais ou menos artesanal. Já o ponto de partida poderá variar entre os locais mais próximos da costa africana até à travessia terrestre a partir, por exemplo, do Sudão. Para as crianças e os jovens torna-se, em regra, numa experiência de perigos, violência e abusos de todo o tipo. Abandono, morte, violações, luta por alimentos, são exemplos de traumas que acumularão até que cheguem às ilhas do Ferro, Fuerteventura ou Gran Canária.
Chegados às Canárias espera-os um sistema de acolhimento que reflecte as consequências das políticas orientadas para a retenção e expulsão de migrantes. Concebido para 1.700 menores dá hoje resposta a 5.500 crianças e jovens migrantes. Os 82 centros de acolhimento fazem o que devia ser feito por 300 centros. A falta de capacidade dos Serviços de Saúde impede uma resposta adequada, inclusivamente no apoio psicológico a crianças traumatizadas. A integração no Sistema Educativo dos jovens com 16 ou 17 anos chega a nem sequer ser considerada. As múltiplas dificuldades na obtenção de documentação entravam o reagrupamento familiar. As outras comunidades de Espanha recusam-se a acolher solidariamente menores nos seus centros, incluindo aqueles a quem foi reconhecido o direito a protecção internacional.
Falando com algumas dessas crianças é possível que nada disso transpareça de imediato. Por momentos, gracejarão e brincarão como qualquer outra criança.
Talvez daqui por anos se apercebam de que serão então, nas palavras de Soeiro Pereira Gomes, homens que nunca foram meninos.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico