Confrontos eternos

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Temos na memória a afirmação de Camilo Castelo Branco: “Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia, escrevia sempre”. Foi ele o primeiro dos nossos profissionais da escrita, deixando-nos milhares de páginas inolvidáveis de pura literatura escritas na universal língua portuguesa. Ele próprio protagonista de uma vida cheia e atribulada, soube tornar o Portugal profundo, pleno de contradições e dúvidas, o principal protagonista da sua obra. Eis por que é difícil registá-lo numa escola ou numa tendência. Não por acaso, encontrando-o na Cadeia da Relação do Porto, onde cumpria uma estranha pena, o rei D. Pedro V, de que Ruben A. disse ser o primeiro homem moderno que houve em Portugal, deixou clara a admiração pelo homem de cultura, desejando vê-lo depressa libertado. Falo de Camilo pela admiração que lhe tenho, mas também pelo facto de não me ter deixado arregimentar em agremiações de devotos. É um romancista maior, a que regressamos sempre com muito gosto e proveito. E o seu vocabulário é algo de extraordinário, o que levou Castilho a dizer: “Que colheita que tenho feito para o Dicionário português nestes seus últimos livros! Se se perdessem todos os nossos clássicos ficando só as obras de V. Exª a vernaculidade nada tinha perdido”. Não há maior elogio, porque Camilo foi, além de grande escritor, um grande leitor, um grande erudito, alguém que soube ouvir como se falava o português vulgar nas paragens mais recônditas.

Preocupado como estou com os sinais de que me apercebo sobre o Plano Nacional de Leitura e a Rede de Bibliotecas Escolares, regozijo-me sempre que releio a prosa camiliana. Mas sem mais delongas, em nome da riqueza da língua e da recusa do uso afetado da mesma, importa deixar claro que Eça de Queirós merece também especial reconhecimento no panorama da nossa língua. Não esqueço as palavras do meu saudoso amigo Antonio Candido a recordar o lugar de honra de Eça na biblioteca de seu pai. Ao lado da riqueza vernacular de Camilo, temos a versatilidade na definição das personagens, que ainda hoje podemos encontrar a cada passo. Ainda que o país seja bem diferente no último século, a verdade é que o confronto entre Camilo e Eça permite-nos concordar com Unamuno quando qualificou como período de ouro o século XIX e a Geração de 1870. Neste tempo em que devemos cerrar fileiras na defesa da leitura e da língua, é fundamental cuidar de lembrar os melhores cultores da melhor escrita. E referindo-nos a algo vivo, não esqueçamos uma plêiade universal onde encontramos Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Pepetela, Nelida Piñon ou Mia Couto… E vem à baila ainda o falso confronto entre Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes, porque sempre devemos recusar as escolhas fechadas. Será possível resumir a cultura a simplificações grotescas? Não é! Uma língua e uma literatura correspondem a modos diversos de assumir a vida e um património múltiplo. De facto, Camilo e Eça foram os leitores mais atentos da sociedade em que viveram. Do mesmo modo, Pessoa e Pascoaes foram os intérpretes essenciais do mundo que era o seu. No fundo, sem estes confrontos eternos o mundo seria mais pobre. Não é avisado olhar o mundo pelo mesmo prisma, esquecendo a magia do caleidoscópio.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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