Complexo Brasil ou Brasil Complexado?

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A Fundação Calouste Gulbenkian tem uma exposição temporária com o nome “Complexo Brasil”. No seu catálogo, há um texto da jornalista premiada Eliane Brum com o título Carta de Desfundação do Brasil — Dirigida aos descendentes dos súditos do Rei Dom Manuel I. Com este título, já se adivinha o que está por ali afora. Exactamente como o título indica, há, segundo essa jornalista, um peso de responsabilidade de todos os portugueses descendentes dos “súbditos de D. Manuel I”. Uma responsabilidade colectiva, não individual (era o que faltava também…). Esqueceu-se é que grande parte dos descendentes desses súbditos, alguns milhões, estão no Brasil. Mas coloca o peso da História apenas nos ombros daqueles que estão em Portugal. Porém, quando pede responsabilidade, qual? A responsabilidade foi entregar-lhes um país que é um continente, heterogéneo, multiracial, multicultural, gigante em todos os sentidos. Infelizmente, não souberam cuidar dele. 

Destila um ódio xenófobo aos portugueses que é desconcertante. Não sei se a jornalista conhece a fábula de Esopo, ou de La Fontaine, mas é o que faz lembrar. Quando o cordeiro diz ao lobo que não poderia ter feito uma determinada acção porque ainda não tinha nascido, o lobo diz “se não foste tu, foi o teu pai, ou o teu avô!”, para justificar o ataque ao cordeiro. E é isto que cada vez mais se vê. A justificação da incompetência dos brasileiros em que, em 203 anos, não foram capazes de transformar aquele país numa potência. Como os Estados Unidos da América, cuja declaração de Independência surge apenas 46 anos antes da do Brasil. Querem que os portugueses façam o quê sobre o passado entre o século XVI e o início do século XIX? Denegrir num texto raivoso, cheio de fel sobre a História não vai curar as feridas do passado. Pelo contrário, vai acicatar, aumentar e destruir qualquer entendimento que os dois povos vinham construindo. Para quem tem Portugal como um dos principais destinos de emigração, o Brasil não se mostra muito inteligente em construir fossos culturais, com pedidos de responsabilidade histórica. Isso sim, é discurso de ódio. E a mim admira-me que a Gulbenkian, essa instituição extraordinária e que foi sempre uma ilha de oxigénio a artistas e investigadores, permita que, num catálogo de uma exposição, que tinha por bem promover a ligação entre dois países que se diziam irmãos, se desenvolva discursos de ódio, revisionismo, anacronismo e alimento para aumentar o fosso de rancor que se nota em crescendo na sociedade.

Eu ainda me lembro de um tempo em que os portugueses ficavam muito felizes em acolher os brasileiros. Chamavam-nos (eu também sou brasileira, porque nasci lá) de irmãos. Com carinho, admiração, bondade e felicidade. 

Com este tipo de atitudes e com os estragos que uma parte da emigração brasileira tem feito em Portugal, esse sentimento deixou de existir.

Instigar os ânimos não vai melhorar em nada o que se vive, actualmente, na sociedade portuguesa.

E a culpa já não é da escravatura: é mesmo da escravidão de pensamento sobre Portugal.

E não vai correr bem.

Professora auxiliar da Universidade Autónoma de Lisboa e investigadora (do CIDEHUS).

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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