Complexo Brasil

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Quem quiser compreender o Brasil na sua complexa diversidade tem oportunidade de o procurar na Exposição que tem lugar na Fundação Gulbenkian, com curadoria de José Miguel Wisnik, secundado por Milena Brito e Guilherme Wisnik, contando com a bela cenografia de Daniela Thomas e Maristella Pinheiro. Fui ao país da minha avó brasileira. E ouvi Darcy Ribeiro a dizer que o Brasil é “inventar o humano, criando um novo género de gentes, diferentes de quantas haja”, mas também Agustina Bessa-Luís a pontuar que “a tristeza e a alegria fazem parte do dia-a-dia brasileiro. Fazem parte da sua liberdade e da sua coragem. Temos de aprender com o Brasil”. Chico Buarque lembra que traz nas suas veias o sangue do açoitado e do açoitador. E Valter Hugo Mãe lembra que “estar disponível para todos os sentidos e todos os caminhos é algo que está no radical brasileiro”. Com emoção, somos transportados à semana de Arte Moderna de 1922, e à reinvenção brasileira moderna de Mário de Andrade.

Reportando-nos aos clássicos intérpretes da formação brasileira – Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior - dir-nos-emos em três países diferentes quase incompatíveis: “num deles, somos um exemplo da mais perfeita integração em terras tropicais” (conforme a primeira frase de Casa Grande e Senzala); no outro, somos “desterrados em nossa terra” (conforme o primeiro parágrafo de Raízes do Brasil); no terceiro, somos nem desterrados nem integrados, um detalhe malformado e atrasado da mundialização do capital que rege o “sentimento da colonização” (conforme o primeiro capítulo de Formação do Brasil contemporâneo). E assim o adjetivo complexo ganha pleno sentido. O que é “declarar de saída que se trata de algo que está fora do alcance de explicações prontas e que escapa a qualquer pretensão totalizante ou esgotante. E o que temos é um conjunto de biomas, de etnias, de culturas, de lógicas, de línguas (quase três centenas), de religiões, e um complexo de processos económicos e de classes sociais, marcadas pela desigualdade. Isto, além do complexo de inferioridade e de superioridade – “síndromes que brasileiros e portugueses costumamos frequentar” (como lembra José Miguel Wisnik). No fundo, importa desencobrir o encobrimento dos brasis numa espécie de desencobrimento mútuo de portugueses e brasileiros. Trata-se de “uma sociedade desigual, que desafia, não obstante isso, a pensar suas formas singulares e diversas de sociabilidade e de criação cultural. Um convite à experiência de brasis, sujeita necessariamente às funções, aos atritos, ao riso, beirando por vezes a admiração, o espanto, o fascínio e o horror”.

Eliane Brum escreve a Carta de Desfundação do Brasil, dirigida aos descendentes dos súbditos do Rei D. Manuel I e põe-nos a responsabilidade atual e futura perante a floresta, criada por todos que nela vivem durante 50 milhões de anos, e que em meio século se aproximou do ponto de não retorno. E em nome do tempo longo, Glicéria Tupinambá trouxe a vestimenta de penas de aves brasileiras, ao lado do manto indígena originário. É uma imersão total no Brasil brasileiro, onde se eterniza Portugal, no impensado de Eduardo Lourenço. E lembro essa fantástica realidade quando fomos a casa de Dona Canô no Recôncavo Baiano, em Santo Amaro da Purificação, e hoje recordamos em Maria Betânia – “Gosto de cantar e escolher minhas palavras para esse Brasil. Não posso viver sem isso!”

Presidente do Conselho das Artes do Centro Nacional de Cultura

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