Complexidades

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Escrevia João Miguel Tavares há poucos dias que existem “cabeças que explodem ao admitirem duas coisas em simultâneo”, referindo-se a situações em que existem dois fenómenos aparentemente contraditórios, mas que podem coexistir. Eu iria mais longe e diria que vivemos tempos em que há cabeças que explodem se forem obrigadas a articular dois pensamentos ao mesmo tempo, sem sequer serem paradoxais. Ou a considerarem mais do que duas opções de análise ou interpretação de qualquer fenómeno, a saber, a “nossa-boa-virtuosa” e a “deles-má-indigna”.

Não sei se isto se deve apenas a oportunismo político e a estratégias de combate pelo poder, se não é sinal de algo mais vasto que se traduz num enorme empobrecimento intelectual de qualquer debate público sobre qualquer matéria. Em parte, porque se aposta que mensagens complexas e elaboradas afastarão ouvintes, leitores ou telespectadores. O problema é que ao empobrecer a mensagem, acreditando na incapacidade dos receptores para algo mais difícil, se alimenta um ciclo vicioso que se auto-reproduz. Ou ao substituir explicações por imagens nas páginas dos jornais. Ou ao preferir horas de discussão televisiva sobre um micro-tema de balneário ou alcova à análise de qualquer assunto com uma capacidade analítica que não esteja condicionada pela perspectiva de uma qualquer nomeação ou escolha para lugar elegível.

Adicionalmente, para além do empobrecimento do debate, existe a sua voluntária distorção, ao truncar ou adulterar factos, ao fabricar causalidades, ao distorcer o que é dito por quem apresenta posições críticas, atribuindo-lhes motivações tenebrosas, considerando irrelevante se essas críticas estão fundamentadas e são correctas.

Um “truque” habitual nos debates actuais é o de considerar qualquer coisa como “populismo”, sem qualquer consideração pelo significado da palavra, na maior parte dos casos usando-o em vez de “demagogia”. Porque “populista” será qualquer pessoa que faça promessas ou afirmações que se pretendem agradáveis a um número alargado de indivíduos. Por exemplo, prometer que se pretende governar no sentido de melhorar a vida de “todos” é uma afirmação populista, muito comum em qualquer político que se candidata a cargo de destaque; já garantir que se for eleito todos passarão a viver melhor é claramente uma afirmação demagógica. Ironicamente, garantir que se vai “limpar” o país da corrupção é algo demagógico, mas não necessariamente populista, se é verdade que o referido país está cheio de corruptos.

Se a complexidade é algo de que o debate político e a sua análise se têm tentado livrar, isso não significa que se tenha optado pela simplicidade, mas sim pelo simplismo das formulações. Um pensamento complexo pode formar-se a partir do encadeamento de ideias, conceitos e argumentos simples, numa rede clara de relações e causalidades. Outra coisa, antinómica, é a opção por um amontoado de simplismos, que tudo mistura, na esperança de dar a sensação de ser coisa profunda e de difícil entendimento.

Complexidade e ininteligibilidade não são sinónimos. A complexidade na análise e explicação de fenómenos sociais ou políticos pode implicar dificuldade na sua compreensão, mas não as torna incompreensíveis. Ou falsamente compreensíveis.

Cresci rodeado de pessoas com baixa escolaridade ou mesmo uma alfabetização rudimentar, mas que explicavam o mundo que as rodeava de forma articulada, dentro dos conhecimentos que tinham. Com um discurso ponderado, não idiotizado, que estabelecia as relações de forma lógica. E isso sempre me foi exigido de modo cada vez mais exigente, à medida que progredia nos estudos. Sempre fui obrigado a explicar-me, de forma a ser compreendido. Como professor, tento ser simples na forma de transmitir conhecimentos, para conseguir que os meus alunos consigam compreender coisas cada vez mais complexas. Tento que eles o consigam. Não prometo que todos vão conseguir. Populismo seria isso. Demagogia é garantir a certificação de que todos o conseguiram.

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