O presidente Donald Trump poderá ter aprendido umas coisas com as eleições que decorreram esta semana na cidade de Nova Iorque e nos Estados de Nova Jersey e da Virgínia. Digo-o assim, se bem que com alguma dúvida, por experiência própria. Trabalhei de perto com vários ditadores e outros absolutistas e apercebi-me de que eles sempre encontram uma justificação para as suas derrotas, quando não falam de vitórias. E continuam na mesma linha autocrata, enquanto fazem uns ajustes eleitorais e encontram uns bodes expiatórios, inimigos internos e externos. A culpa é atribuída a esses inimigos, mais ou menos inventados e ferozmente diabolizados. A propaganda do regime é então sempre intensificada. Nunca vi um líder autoritário sair do poder pelo seu pé ou assumir a responsabilidade de uma derrota nas urnas. Trump deve ter notado as razões destas derrotas – ou alguém do seu círculo mais próximo terá arriscado a coragem política suicida de lhe chamar a atenção. Primeiro, o custo de vida e a situação económica dos eleitores continuam a ser importantes argumentos eleitorais. Nova Iorque é uma das cidades mais caras do mundo. Ocupa o primeiro lugar quando se trata do custo do arrendamento habitacional. E o preço dos bens de primeira necessidade, quando comparado com o salário médio dos seus habitantes, é proporcionalmente dos mais elevados do planeta. Nova Jersey e a Virgínia têm taxas e impostos exagerados, energia e sistemas de saúde inabordáveis, e falta de empregos. A economia é, nas democracias, um argumento eleitoral fortíssimo. Segundo, o pragmatismo atrai votos. As pessoas começam a estar cansadas com a intolerância interpartidária, que é alimentada diariamente pelos extremistas nos EUA, com Trump à cabeça. A moderação e o realismo perante os problemas do quotidiano têm grandes vantagens eleitorais. É uma lição que pode ser válida noutras partes do mundo onde o voto é livre, em Portugal ou como aconteceu na semana passada nos Países Baixos. Os cidadãos das nossas democracias começam a estar fartos de berros, dos exageros e de extremismos idiotas. Querem propostas de soluções que respondam aos seus desassossegos e dificuldades fundamentais. Também não querem uma comunicação social que amplie os radicalismos verbais e os comportamentos boçais. Terceiro, a oposição à instabilidade, à desumanidade e à má e perigosa governação de Trump está a crescer. Na sondagem CNN/SSRS da semana passada o nível de aprovação do presidente descera para 37%. Continua a ser incondicionalmente apoiado por uma franja significativa de Republicanos, mas a tendência entre os independentes está em baixa contínua. Também se constata que uma parte dos Democratas que nele votaram há um ano estão agora arrependidos. Trump pode ser considerado um mau governante e um membro proeminente entre os líderes autocratas que estão à frente de vários países, mas estou seguro de que sabe o que todos eles sabem: o essencial é não perder o poder. Para o conseguir, essa gente cria ficções e falsas narrativas, sobretudo as que mais medo possam meter, desestabilizar o eleitorado e estimular o ódio contra os segmentos da sociedade que possam ser acusados de serem estranhos e terem comportamentos diferentes. Tentou fazer isso com o vencedor da eleição para a presidência da câmara da cidade de Nova Iorque, Zohran Mamdani. Este candidato, que acabou por derrotar não apenas Trump como também as elites habituais do Partido Democrata, reunia todas as condições para ser um alvo fácil a abater politicamente: muçulmano de religião, socialista democrático de convicção e filho de pais imigrantes, de origem afro-indostânica. Venceu e mostrou que a religião ou a condição de imigrante não são argumentos que pesem numa sociedade democrática avançada. Já Sadiq Khan, o presidente trabalhista do município de Londres, o havia demonstrado ao ser eleito em 2016. Khan foi em 2018 considerado pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do planeta. Não vejo nenhum político português nas listas da Time. Nos próximos 12 meses, antes das eleições intercalares para o Congresso Federal, Trump vai tentar sabotar a governação de Mamdani e das duas governadoras agora eleitas. Fará o mesmo contra todos os democratas à frente de outros Estados e cidades. Assim se constrói a falseada narrativa da incompetência dos adversários. Prosseguirá igualmente o destacamento de militares da Guarda Nacional para cidades de maioria democrática, para fazer prevalecer na opinião pública a ideia de que a oposição democrata é sinónimo de caos social e de incapacidade na luta contra a criminalidade. Ao nível internacional, procurará demonstrar uma mão firme e guerreira contra a Venezuela, a Colômbia e a Nigéria, entre outros. Não mostrará firmeza contra a Rússia ou a China. O estilo de Trump passa pela subordinação perante os fortes e a força bruta contra os mais fracos. Sabe que não deve atacar potências fortes. Mas as outras poderão facilmente ser derrotadas, umas sob o pretexto do combate à criminalidade organizada que trafica droga para os EUA, outras sob o álibi inventado da defesa dos praticantes da fé cristã. Em ambos os casos, temos aqui matérias que podem mobilizar eleitores e pintar de Trump um retrato nobre e determinado. Na política do faz de conta, a imagem conta muitas vezes mais do que a verdade. Depois destas derrotas, Trump vai jogar forte e feio, acentuar o seu autoritarismo. Será que os americanos e os europeus terão a coragem de levantar a voz e dizer que não, que já chega? Conselheiro em segurança internacional.Ex-secretário-geral-adjunto da ONU