Comer é cada vez mais um ato revolucionário
Talvez não imaginemos que 94% dos mamíferos do planeta são animais em produção para alimentação humana. Este abissal número, presente num estudo do Our World in Data, é apenas a ponta do icebergue de um facto que tentamos ignorar: a espécie humana está a devorar, a grande velocidade, os recursos planetários. A produção alimentar tem um peso enorme na forma como podemos atingir, ou não, as metas do Acordo de Paris. É sem dúvida bom reduzir mobilidade ou reciclar resíduos. Mas é pouquíssimo.
Os números da FAO - Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - mostram que 26% das emissões de carbono mundiais resultam da agricultura. Se adicionarmos o processamento alimentar e o transporte, a fasquia sobe para 34%. É muito mais do que se imagina, se tivermos em conta que tudo o resto (transportes, produção energética e industrial, etc.) vale 66%.
Outro dado importante: 50% do solo disponível no planeta está dedicado à produção agrícola e animal. A outra metade é composta por florestas (37%), vegetação (11%), e áreas construídas e lagos (1% cada). E se 50% é significativo, o consumo de água é ainda superior: 70% do total anual no planeta. Em cima disto, a produção agrícola e animal eutrofiza (torna imprópria) 78% da água que circula em barragens e rios, como consequência dos pesticidas usados.
Fazer de conta que não é connosco tornou-se impossível. Consumir localmente, alimentos da época e com a menor embalagem possível, deveria ser a primeira opção quando fazemos compras. Mas sem dúvida que o ponto mais doloroso para a maioria das pessoas é o da pegada ecológica do consumo de carne. E, de facto, sem alguma mudança neste ponto, quase nada muda.
A razão é esta: quando vemos que 50% do solo habitável da Terra está entregue à agricultura, falta acrescentar que 77% deste solo está dedicado à produção de carne, lacticínios, aves - e cereais para esta produção bovina e avícola. Ou seja, quase 4/5 do total. Cereais, leguminosas, vegetais e frutas ocupam apenas 23% do solo agricultado global. No entanto, repare-se: apesar de valer 77% do solo agrícola, a produção animal vale apenas 18% das calorias e 37% das proteínas produzidas mundialmente. Em contraponto, os (apenas) 23% de terra onde cultivamos os "frescos" e grãos geram 82% das calorias e 63% das proteínas do consumo humano.
Daqui se conclui que uma enorme parte da humanidade, sobretudo em países pobres, vive de cereais, leguminosas, frutas e vegetais - sem obesidade e com saciedade (retirando-se, obviamente, os casos conhecidos de países com carências alimentares).
Quanto ao peixe, o nosso consumo de pequenos pelágios (cavala, carapau e sardinha), provenientes de frotas locais, é a atitude mais sustentável quanto aos recursos marinhos. Bónus: neles estão presentes alguns dos melhores níveis de ómegas e proteínas piscícolas (além das algas).
Todos estes dados mostram a necessidade contrariar a dependência face à indústria de processamento alimentar, ao transporte e ao desperdício. Sem o fazermos, corremos um risco duplo: mudanças brutais no clima e o perigo de perdermos colheitas, variedade de sementes, água, além de um crescente fosso entre quem tem ou não acesso a alimentos. A tecnologia e engenho humano ajudam a mitigar problemas, mas os mais pobres pagam sempre a maior fatura. Vemos isso na pandemia. Numa crise climática crescente, a escala do sofrimento será infinitamente superior, com a diferença de que não há vacina de efeito imediato.
Jornalista