Comemorar os 50 anos de reinvenção do Estado

Publicado a

Pouco ou nada se fala em Reforma do Estado quando se evocam as datas da Revolução de Abril de 1974 e do período que lhe sucedeu. Por isso decidi desta vez falar na primeira pessoa e partilhar a minha experiência de há 50 anos atrás.

Não falo apenas da história lida nos livros, mas da experiência pessoal que vivi intensamente nessa altura. Desde 1973, no Secretariado da Reforma Administrativa, ainda sob a vigência de Marcelo Caetano, eu já trabalhava na preparação de um Estado que precisava de se modernizar. Após o 25 de Abril, fui bastante ativo nas assembleias de trabalhadores no fervor da participação popular e na denúncia de oportunismos que se infiltravam na espuma revolucionária.

Fiz o relatório síntese dos cadernos reivindicativos da administração local, trabalhei na reestruturação e na “reparação de injustiças” em vários ministérios, em particular na administração fiscal. No “verão quente”, participei na criação de sistemas de avaliação e qualificação de funções, para tentar dar rigor e justiça às carreiras do Estado. Foi também então que comecei a trabalhar em sistemas e tecnologias de informação.

Vi de perto a ocupação das terras no Alentejo e, entre 1974 e 1977, colaborei intensamente na reinvenção do Estado democrático em vários ministérios. Mais tarde partilhei essa experiência, a convite da OCDE, com vários países em transição democrática no leste da Europa.

Foram anos de caos e de sonho, de ordem e desordem, mas também de transformação concreta, com as mãos na massa. Aprendi que a democracia não se constrói apenas em quartéis, nem aos gritos em ruas cheias de slogans ou a incendiar sedes partidárias e a cercar parlamentos. Constrói-se sobretudo no quotidiano da administração, na reforma paciente das instituições e na criação de regras mais justas. 

A partir daí dediquei toda a minha vida à transformação digital da administração pública, em Portugal e no estrangeiro, sem jamais me submeter a amarras partidárias nem abdicar do meu espírito crítico.

É por ter vivido essa experiência que afirmo hoje que comemorar os 50 anos do 25 de Novembro de 1975 seria um erro grave, não apenas histórico, mas também político.

A proposta de comemoração oficial não é inocente. Uma parte da população ainda confunde comemoração com vingança. Não seria o dia da celebração da democracia, mas o da vitória de uns sobre os outros. Seria o “dia do ressentimento” contra o próprio 25 de Abril, quando só Abril pode ser uma festa comum.

Tal como não se comemorou o 11 de Março de 1975, também não se deve comemorar o 25 de Novembro. Ambos foram momentos de libertação parcial, num movimento pendular. O 11 de Março libertou o processo revolucionário do peso de uma direita ainda presa ao passado, enquanto o 25 de Novembro libertou o país da tentação de um autoritarismo de inspiração soviética. Mas nenhum deles libertou o povo em conjunto. Só o 25 de Abril de 1974 cumpriu essa promessa, porque foi a libertação de todos.

Não podemos cair na armadilha de transformar memórias divididas em festas oficiais. O 11 de Março e o 25 de Novembro devem ser lembrados e estudados, mas nunca comemorados. Porque comemorar é celebrar e essas datas não unem, apenas dividem famílias, amigos e memórias.

A única celebração verdadeira é a do 25 de Abril. Uma madrugada que, embora não tenha nascido de um ato democrático formal, acabou por pertencer a todos, sem colocar uns contra os outros e conseguindo unir um povo inteiro contra a ditadura.

Se quisermos criar um “dia do ressentimento”, então avancemos com o 25 de Novembro como festa de uns contra os outros. Mas se quisermos preservar a democracia como património comum, então celebremos apenas Abril, o dia em que Portugal se libertou inteiro e não apenas uma metade que ainda julga ter vencido.

Especialista em governação eletrónica

Diário de Notícias
www.dn.pt