Coexistência

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Assinalam-se hoje dois anos sobre o 7 de outubro de 2023 - o dia em que o Hamas atravessou a fronteira de Gaza e em Israel matou quase 1200 pessoas e fez 251 reféns. Entre eles estava Moran Stella Yanai, uma artista de 40 anos de Beersheba, que regressou a casa após 54 dias de cativeiro.

Cerca de seis meses depois da libertação, Moran esteve na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, para participar num debate sobre o conflito israelo-palestiniano. Com ela estavam Mosab Hassan Yousef, filho de um dos fundadores do Hamas (hoje um dos seus mais ferozes críticos), e Aidan Doyle, estudante pró-Palestina da UCLA. O público estava dividido, e o ambiente, tenso.

Moran falou devagar, sem dramatismo, tentando captar o olhar do estudante. “Sou artista. Servi no Exército, há mais de vinte anos. Tenho um colar árabe, tatuagens indianas, símbolos do faraó nos meus dedos e, numa mão tatuei a letra hebraica ‘ח’ - het - que representa a vida. Porque acredito na coexistência.” Explicou que crescera entre judeus e árabes no sul de Israel, que os seus fornecedores para a joalharia que criava eram egípcios e árabes, que a sua melhor amiga era judia e casada com um árabe. “Muitos dos meus amigos acredita na coexistência. Vivo em Beersheba, uma cidade onde muitos judeus e árabes vivem lado a lado. Era assim que vivia a minha vida”, disse.

E repetiu a sua experiência de coexistir com pessoas de outras religiões, origens, cores. Ela própria, revelou, era judia de origem marroquina e egípcia. Depois, a voz mudou de tom, quase embargada. “Disseram-me, dentro de Gaza, que não sabiam do festival Nova. Que não sabiam que lá estavam 3000 pessoas. Disseram-me que queriam seguir para Beersheba, para Telavive, para Haifa, e matar todos os que pudessem.” Fez uma pausa. “Talvez não acreditem em mim. Vi corpos por todo o lado. Corpos de amigos. Tanta violência”. O estudante nunca a olhou nos olhos.

Nesta edição do DN, a jornalista Susana Salvador intitula o seu artigo sobre o massacre de 7 de outubro “Trauma e esperança. Dois anos após o ataque do Hamas, volta a falar-se de esperança”. Lembra que negociadores israelitas e representantes do grupo terrorista que governa Gaza estão a discutir o plano de 20 pontos de Donald Trump, “a melhor oportunidade para o fim do conflito”. De acordo com uma sondagem, 66% dos israelitas defendem o fim da guerra, mais 13 pontos do que há um ano. Em Gaza, segundo o Hamas, onde já morreram quase 70 mil pessoas vítimas dos bombardeamentos israelitas, não se sabe quantos querem a paz. Nem quantas vezes apelaram aos seus líderes para que entregassem os reféns o que ditaria o fim da guerra.

Por isso, é de questionar se assinado este acordo, haverá ainda lugar à coexistência? Em Israel, governa uma coligação de extrema-direita que se apoia em partidos religiosos e colonos que reivindicam a ocupação como mandato divino. Em Gaza, o Hamas, sustentado pelo Irão, faz da destruição de Israel o seu programa político. Entre ambos, não sobra espaço para moderação nem para diálogo. Soa até oca a palavra.

Mesmo na hipótese do afastamento, pelo menos formal, do Hamas do poder em Gaza, há toda uma população ensinada a odiar Israel, motivada ainda mais pela guerra. O Hamas governa como milícia e não como Estado: comanda pela obediência, elimina quem o contraria e sacrifica o seu próprio povo à lógica da guerra permanente.

Em Jerusalém, o espelho dessa radicalização é o atual governo israelita, onde ministros como Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich trazem o extremismo religioso e o nacionalismo étnico para dentro do poder. Ben-Gvir, o que chamou “terroristas” aos ativistas detidos da flotilha, herdeiro do movimento kahanista, que defendia a expulsão dos árabes de Israel, exibiu, nos anos 90, o emblema do carro de Yitzhak Rabin e prometeu “chegar também a ele”, semanas antes do assassinato do primeiro-ministro por um extremista judeu. Smotrich, ministro das Finanças, defende abertamente a expansão de colonatos ilegais e já pediu que uma aldeia palestiniana fosse “apagada do mapa”. Ambos foram sancionados por governos ocidentais por incitarem à violência contra palestinianos.

São inimigos que se alimentam um do outro e que precisam um do outro para justificar o próprio poder. Jamais vão aceitar a coexistência dos seus povos.

Mesmo quando Israel teve líderes mais moderados, o caminho da paz foi sempre sabotado pelos extremistas. O processo de Oslo foi minado por atentados palestinianos e acabou com o assassinato de Rabin. Desde então, cada tentativa de acordo fracassou. Agora, volta a falar-se de um cessar-fogo e de um plano de reconstrução, mas é difícil acreditar que qualquer papel assinado resista à realidade no terreno.

Este conflito tem alastrado para o mundo. Também nas democracias ocidentais, o espaço da coexistência parece estar a desaparecer. As manifestações pró-Palestina nas ruas europeias, incluindo Lisboa, juntam reúnem quem pede um cessar-fogo e quem exige o fim de Israel. São as mesmas marchas, não marchas diferentes. O radicalismo que transforma a causa humanitária em bandeira de confronto.

Nos últimos dias, começou a circular nas redes sociais um cartaz anónimo a convocar manifestações para o 7 de outubro, em Braga e no Porto, sob o lema “Queremos a vossa raiva”. O cartaz, com frases em árabe e português - “Nós não precisamos mais da vossa simpatia” -, usa a raiva como palavra de ordem, transformando o sentimento em combustível político. A polarização alastra. Cresce nos parlamentos, nas redes e nas conversas. A moderação tornou-se suspeita; o compromisso, uma fraqueza.

Dois anos depois do massacre, Moran Stella Yanai continua a falar sobre o medo, sobre o cativeiro, sobre a humanidade. Disse recentemente em Telavive: “Ninguém devia regressar à escuridão. Não é uma questão de estratégia nem de ideologia. É uma questão de humanidade.”

A coexistência não morreu em 2023. Foi morrendo com cada atentado, cada colono armado, cada humilhação e cada recusa de reconhecer o outro. Coexistir é um princípio de civilização. Sem ele, o que sobra é o mesmo que hoje se vê em Gaza e em Israel: violência, medo, vingança e um futuro que depende agora, não só do que os israelitas, a única democracia na região, conseguirão fazer nas próximas eleições, mas também, como disse o experiente jornalista Henrique Cymerman, em entrevista ao DN, da comunidade internacional ajudar a desradicalizar a Palestina e reestruturar toda a educação.

“É preciso educar para a paz”, sublinhou, contando que na Palestina, sobretudo em Gaza, viu os livros de matemática, nos quais os problemas que dão às crianças são “se eu tento matar 15 judeus e não consigo matar 3 deles, quantos consegui matar?”. É assim que se ensina em Gaza.

Talvez o Acordo de Abraão consiga voltar a unir os dois povos, que são afinal, primos. Talvez um dia, tanto sofrimento traga a Paz divina de volta a árabes e judeus. Nesta altura, só Abraão conseguirá esse milagre.

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