Épor certo um privilégio, ou uma compensação pelos meus 75 anos, ter sido recentemente convidado, eu, um não académico (“doutor não, simples licenciado”, dizia sempre meu tio desse estádio inferior em que a minha carreira universitária tinha terminado), para dois congressos académicos: um, o congresso “Vi claramente visto”, que teve lugar na Academia dei Licei, em Roma, sobre Camões, o outro “Eça com norte”, em Marco de Canaveses, no Centro Cultural Emergente.No primeiro defrontei sozinho a maioria académica, com uma intervenção inicial, pela qual me chamaram de “keynote speaker”; no segundo estive numa mesa redonda coloquial e amiga com Mário Cláudio, Rui Vieira Nery e Ana Bárbara Pedrosa, (bem) moderados por Jorge Sobrado.Se encontrar Camões em Roma é encontrar-nos com os grandes mitos clássicos que são muitas vezes o subtexto da sua poesia, já encontrar Eça no Douro é encontrar o lisboeta da cidade (“Lisboa é Portugal”), que visita os campos da sua pátria e deles nos fala na “Cidade e as Serras”, que continuo a considerar uma obra intencionalmente mal lida por aqueles que a definiram como uma adesão ao ruralismo estagnado do salazarismo. Basta ver a indignação de Jacinto (Zé Fernandes está mais habituado) com as condições miseráveis em que vivem os camponeses naquelas terras. Mas, como não podia deixar de ser, este confronto entre o citadino cosmopolita e o Portugal profundo e rural não podia deixar de passar pelo enfrentamento clássico (uma interveniente, usando a metáfora futebolística, chamou-lhe “o clássico dos clássicos”) entre Eça e Camilo.É fácil entender a rivalidade: Eça é o escritor das “elites”, que vivem há gerações no confronto permanente entre as exigências da modernidade e as resistências de uma sociedade, que ainda há cinquenta anos era classificada como “sociedade dualista em evolução” (Adérito Sedas Nunes), e que se revêem na genial e diabólica caricatura que Eça deles lhes oferece. Camilo é, não apenas o escritor romântico dos amores contrariados, como a vulgata nos tentou inculcar, mas a expressão maior de um país rural, analfabeto, pobre e religioso, que na revolta da Maria da Fonte consegue unir o miguelismo vencido com a esquerda setembrista num movimento popular de resistência ao modelo liberal, que mostrou bem as dificuldades de emendar um reino velho, que Ribeiro Sanches já denunciava no século XVIII.Em Camilo encontramos o país velho, que é o da maioria rural, aferrada à tradição, em Eça a elite essencialmente urbana e burguesa que procura acertar o passo com a evolução europeia do seu tempo. Para entendermos melhor o nosso passado, um e o outro são indispensáveis. Para encontrarmos o prazer da leitura de um grande escritor, será mais atraente a uma primeira leitura o delicioso estilo, irónico e trabalhado, de Eça; mas Camilo, que nos levará talvez mais tempo a entender profundamente, é igualmente um escritor portentoso, menos divertido, talvez, mas igualmente cruel.Camões, para voltar a Roma, é quem nos mostra a projeção dos portugueses para fora das suas fronteiras, que constitui outro traço essencial do que fomos e do que somos, e que o grande poeta não deixa de criticar acerbamente, nas suas misérias e injustiças. Camões é o poeta do “desconcerto do mundo” e a sua exaltação ideológica da Fé e do Império não o tornam cego às debilidades e vilezas que também via, claramente visto, sem transigências nem desculpas.E voltamos a Lisboa. Por muito que nos apeteça ler nos clássicos o nosso tempo (e muito dele lá está) não podemos esquecer que vivemos numa sociedade totalmente diferente nas suas condições materiais e com riscos bem distintos aos que enfrentámos no passado. Revermo-nos (justamente) no passado não pode levar-nos a esquecer as profundas diferenças que há nos males presentes.Diplomata e escritor