Deng Xiaoping era 11 anos mais novo do que Mao Tsé-tung, mas já uma figura de topo no Partido Comunista Chinês, quando em 1949 a República Popular foi proclamada. Nas décadas seguintes, a relação do todo-poderoso Mao com o companheiro da guerrilha alternou entre momentos de confiança quase absoluta e a vontade de quase o fazer cair em desgraça. E foi só após a morte do fundador do regime comunista chinês que Deng pôde mostrar todos os seus dotes de liderança, nomeadamente o pragmatismo ideológico que permitiu à China fazer as reformas que a transformaram no que é hoje: a segunda maior economia mundial, e com ambição de ultrapassar os Estados Unidos..Mao pôs fim ao chamado “século de humilhações”, um período marcado pela semicolonização europeia, senhores da guerra, guerras civis e ocupação japonesa. E unificou o país. Ficaram por resolver, porém, três situações: Taiwan, Hong Kong e Macau..Tirando esta última cidade, um porto no Rio das Pérolas governado por Portugal desde 1557, tudo era resultado do tal “século de humilhações”: Hong Kong foi conquistada pelos britânicos, depois de uma falsa disputa sobre liberdade de comércio, que envolvia o tráfico de ópio; Taiwan foi cedida, primeiro, pela Dinastia Qing ao Japão depois da derrota da China numa guerra que visava o controlo da Coreia, e depois serviu de refúgio aos nacionalistas chineses derrotados na guerra civil..Explica Luís Cunha, autor do agora publicado Taiwan - Paz e Guerra na Ásia, que Mao provavelmente teria tomado Taiwan sem grandes dificuldades se o generalíssimo Chiang Kai-shek não ganhasse nova influência junto dos Estados Unidos assim que começou, em 1950, a Guerra da Coreia. Depois, a Guerra Fria garantiu a Taiwan, formalmente a continuação da República da China fundada em 1912 por Sun Yat-sen, a proteção americana, que se manteve mesmo depois de Washington ter reconhecido Pequim e desfeito as relações diplomáticas com Taipé. Hoje, o apoio americano a Taiwan tem sobretudo que ver com a contenção de uma China aspirante a superpotência, mesmo que a afirmação da democracia na ilha atraia uma simpatia que não existia nos tempos ditatoriais de Chiang..Com uma guerra na Ucrânia e outra no Médio Oriente, não falta quem receie que Taiwan se torne a terceira grande guerra da atualidade. Basta Pequim considerar que quem governa a ilha trocou o statu quo de adesão formal à ideia de Uma Só China (embora temporariamente dividida) pela declaração de independência. Em Pequim, Xi Jinping já não esconde que a reunificação pode não ser pacífica, e em Taipé William Lai, tal como antes Tsai Ing-wen, aposta forte no reforço das capacidades militares e na proteção dos Estados Unidos para dissuadir qualquer invasão..Luís Cunha, grande conhecedor desta tensão no Estreito de Taiwan, relembra em entrevista esta segunda-feira, 25 de novembro, ao DN que a ideia de “Um País, Dois Sistemas”, que serviu de base às negociações com o Reino Unido e Portugal para a devolução de Hong Kong (1997) e Macau (1999), nasceu para tentar resolver a situação da ilha onde se refugiou o Kuomintang, o velho partido nacionalista chinês. Ora, essa ideia, mesmo que alguns a façam remontar a Mao, é outro dos extraordinários legados de Deng, que foi líder supremo da China entre 1978 e 1992, na realidade até morrer em 1997. Uma ideia que hoje não é vista como solução por culpa tanto de quem governa em Pequim como de quem manda em Taipé..A proposta de Deng, que deixava uma larguíssima autonomia a Taiwan exceto nos Negócios Estrangeiros, podendo não só manter o sistema político como Forças Armadas próprias, nunca teve grande desenvolvimento negocial. Isto apesar de momentos emblemáticos como a Declaração Conjunta de 1992 sobre Uma Só China e o encontro de Xi e do então presidente taiwanês Ma Ying-jeou, em Singapura, em 2015, mas na qualidade de líderes do Partido Comunista e do Kuomintang..Digamos que o reforço do controlo de Pequim sobre Hong Kong, onde é suposto a fórmula Um País, Dois Sistemas imperar 50 anos, afeta qualquer hipótese de confiança dos 24 milhões de taiwaneses nas promessas de Pequim, assim como os exercícios militares em redor da ilha mostram uma faceta agressiva que alimenta a animosidade numa população que, sobretudo os mais jovens, sente ter já escassos laços com a China. Por outro lado, os sucessores de Ma, primeiro Tsai e agora Lai, multiplicam-se em afirmações de soberania que desagradam à China, confiante que, com os seus 1440 milhões de habitantes, é naturalmente o lado vencedor se a disputa se agravar..Nos meios académicos, a possibilidade de regresso a uma solução baseada na tal ideia de Deng nunca desapareceu. Também não desapareceu, ao que parece, em alguns círculos políticos taiwaneses, certamente no Kuomintang, mas também entre figuras como Annete Lu, que foi vice-presidente de Shen Shui-Bian, o primeiro presidente taiwanês oriundo do Partido Democrático Progressista, o de Tsai e Lai, que defende a independência mesmo que se refreie de a declarar. Já depois da invasão russa da Ucrânia em 2022, e quando se falava já com insistência da possibilidade de uma guerra também na Ásia, Lu lançou o debate sobre uma espécie de “Comunidade Chinesa”, que fosse aceitável para Pequim e Taipé, não impedindo que futuras negociações levassem a soluções diferentes..Deng, que foi aconselhado pelo pai de Xi, o também histórico Xi Zhongxun, a avançar com as reformas económicas, merece ser lembrado em Pequim e também em Taipé. Muita da atual prosperidade taiwanesa ( e chinesa) deve-se à forma como aceitou o investimento pioneiro vindo da ilha, apesar das divergências políticas. O pragmatismo pode por vezes não dar a mais desejada das respostas a quem acredita 100% num ideal, mas traz o compromisso que salvaguarda boa parte daquilo que é o mais importante desse ideal. E o mais importante no estreito de Taiwan é evitar a batalha final da guerra civil chinesa de 1945-1949..Diretor-adjunto do Diário de Notícias