Chega, entre a norma e o poder

Quando a liderança se sobrepõe à legalidade, o princípio democrático cede lugar ao artifício e à autocracia disfarçada.
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Ao longo dos anos, temos assistido a uma sucessão de acusações contra André Ventura e o partido Chega, como alegações de racismo, xenofobia, fascismo e financiamento ilegal. Mas é difícil acreditar que alguma destas denúncias venha a ter efeitos concretos.

Depois de Ana Gomes, também Garcia Pereira tentou, com base nessas alegações, pedir a extinção do partido. Se a antiga eurodeputada continua há anos à espera de resposta, o mesmo aconteceria ao advogado, não fosse ter percebido que essa batalha estava condenada à estagnação e ter apresentado nova queixa, esta sim, com a justificação potencialmente certeira.

O verdadeiro problema de Ventura está, contudo, nas suas próprias incongruências. Do ponto de vista jurídico, a mais grave é a sua tendência quase patológica para contornar a lei e os regulamentos.

Fê-lo para silenciar vozes internas incómodas, expulsando militantes por delito de opinião sem lhes conceder direito de defesa; fê-lo ao alterar regulamentos de modo irregular, impedindo que alguém pudesse disputar a liderança; e fá-lo, de forma reiterada, há seis anos na gestão quotidiana do partido.

O Chega nunca conseguiu legalizar os seus órgãos ou as alterações estatutárias. Segundo o Tribunal Constitucional, os últimos órgãos nacionais comunicados datam de 29 de agosto de 2019. Ou seja, há mais de seis anos que o partido não cumpre o que está previsto na Lei dos Partidos Políticos. Esta, na alínea c) do artigo 18.º, determina que “a não comunicação de lista atualizada dos titulares dos órgãos nacionais por um período superior a seis anos” implica a extinção judicial do partido.

A redação da norma é inequívoca. Assim, a queixa apresentada ao Tribunal Constitucional — e não apenas ao Ministério Público — obriga o tribunal a pronunciar-se. A lei é suficientemente clara para não permitir interpretações múltiplas ou subjetivas, por muito fértil que o Direito possa ser em matéria de hermenêutica.

Mas, para lá dessa alegada irregularidade, há algo que me preocupa ainda mais, enquanto fundador e enquanto cidadão que paga (muitos) impostos: quem gere e gasta os milhões que o partido recebe?

Sem órgãos legitimamente eleitos, alguém está a gerir, sem autoridade formal, mais de cinco milhões de euros por ano de fundos públicos. Esta situação levanta sérias dúvidas — e pode configurar crimes como desvio de fundos ou má utilização de verbas. Falo de despesas com refeições, motoristas e seguranças pessoais, viagens e, sobretudo, da forma como são distribuídas as verbas de campanha, incluindo as que foram atribuídas à candidatura presidencial de Ventura. Quanto foi transferido para esta candidatura unipessoal e por quem?

Neste momento, não há ninguém com legitimidade formal para autorizar o uso desse dinheiro. Ainda assim, ele continua a ser gasto como se nada fosse, à custa dos contribuintes.

O Chega e o seu líder podem queixar-se, por vezes, de tratamento desigual por parte das instituições ou da comunicação social. Mas, neste caso, a responsabilidade é inteiramente interna. Estas trapalhadas são fruto exclusivo da forma como o partido é conduzido. E, no fim de contas, Ventura só poderá queixar-se de si próprio.

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