Centenário da Volta a Portugal em Cavalo: José Tanganho, o vencedor improvável

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Corria o ano de 1925.O país fervilhava de descontentamentos e conspirações militares que alimentavam as páginas dos jornais: revolta de oficiais monárquicos em março; golpe dos generais em abril; revolta de Mendes Cabeçadas em julho.

Líder de mercado, o Diário de Notícias ostentava na capa a justa menção: “A maior tiragem e expansão de todos os jornais portugueses”.

A função da imprensa não se limitava a refletir o mundo. Pretendia transformá-lo.

Perante uma economia deprimida, uma classe política desacreditada e um endividamento assustador, imbuído de espírito patriótico e de uma visão romântica da nação, em agosto de 1925 o Diário de Notícias lança o concurso “Riquezas de Portugal”. Havia que descobrir e valorizar o país.

Segue-se o “Grande Circuito Hípico de Portugal”, organização do mesmo jornal, baseado numa narrativa histórica ilustrada com eloquência na capa de 10 de outubro, em que figura um cavaleiro militar do “Circuito” na linha dos heróis guerreiros fundadores da nação.

O Circuito foi desenhado para os militares, proclamando o DN, em parangonas, na edição de 2 de outubro: “A patriótica iniciativa do Diário de Notícias foi acolhida com entusiasmo pela gloriosa cavalaria portuguesa”.

O mesmo jornal, na edição de 10 de outubro, enfatiza essa vertente, filiando-o nas conquistas que definiram e mantiveram a soberania nacional.

Na referência aos concorrentes, valoriza-se a condição militar: “…cavaleiros portugueses, oficiais do exército educados na escola do heroísmo, afeitos a suportarem com estoicismo o rigor das intempéries, destros em todos os exercícios físicos…”.

A comissão organizadora da prova – de que fazia parte Caetano Beirão da Veiga, diretor delegado do DN –, integrava nove oficiais de cavalaria, não se prevendo a concorrência de “paisanos” na divulgação promocional.

Inscritos 43 concorrentes, todos militares, com exceção de três “paisanos”, compareceram apenas 39, para percorrer um circuito que abrangia ao longo das fronteiras 70 vilas e cidades do país, numa extensão de 1458 quilómetros em 25 dias.

Um dos paisanos chama-se José Bernardo Tanganho, e conta mais tarde ao Século Ilustrado (edição de 18 de julho de 1964), que tentou inicialmente treinar uma égua “duma tipóia de aluguer com que me governava”, acabando por desistir, quando constatou que “ela tinha uma assentadura”, vindo a escolher um cavalo dum lavrador do Cartaxo, “que andava também engatado a uma charrette”, treinando-o na Foz do Arelho a puxar uma “bateira”, de tal forma que “o cavalo arranjou uma caixa de ar que não havia quem o aguentasse”.

O cavalo chamava-se Favorito.

Na mesma edição do Século Ilustrado, o cavaleiro caldense fala do cerimonial da partida e do olhar de descrédito das autoridades da República que passaram revista à formatura dos cavaleiros – o chefe do governo Domingos Pereira; o ministro da guerra, general Vieira da Rocha; o general Roçadas; e outras autoridades civis e militares: “[…] só havia três civis; eu e mais dois. Estávamos os três à parte, na formatura e, quando passaram revista e nos viram, aqueles generais todos começaram a olhar uns para os outros e um deles perguntou: ‘mas para onde é que estes maduros vão’.”

A aventura começa no Jockey Club, no dia 10 de outubro, e na edição do dia seguinte o DN dá notícia dos elementos do jornal que a acompanham: “Com os concorrentes seguiram o nosso director delegado, sr. Dr. Beirão da Veiga, o nosso camarada de redacção, sr. Oldemiro César e o fotografo do Diário de Notícias, sr. Anselmo Franco, num automóvel ‘Overland’, guiado pelo distinto ‘sportman’ sr. Ernesto Zenoglio”.

Identificando-se com o plebeu que desafia os militares, o povo elege o seu “favorito”, e acorrem multidões a gritar o nome “Tanganho” por todas as localidades do Circuito.

Foram 25 dias na fronteira da resistência dos cavaleiros e das montadas.

Na imprensa da época há ecos da morte de dez cavalos, alguns abatidos pelos cavaleiros para lhes aliviar o sofrimento.

Sobre a extrema dureza do percurso, diz-se na reportagem do DN de 4.11.1925 que os concorrentes passaram “Por caminhos que em muitos pontos só existiam na imaginação, através de precipícios, por estradas convertidas em barrancos quasi intransitáveis, em muitos sítios sem guias […]. Era quasi uma loucura […]”..

O “Favorito” prossegue a sua marcha vitoriosa, deixando para trás cavalos bem treinados dos concorrentes militares, protegido pelo cavaleiro caldense, que percorre parte do circuito a pé, como diz mais tarde na entrevista que concede ao Século Ilustrado (18.07.1964): “Rompi três pares de botas em dezoito dias. Andava dez metros a cavalo e vinte a pé, para o animal se aguentar.”

Só três concorrentes chegarão a Lisboa.

José Tanganho vence a prova após a morte do cavalo do seu grande rival capitão Rogério Tavares.

Alimenta o entusiasmo popular uma pretensa animosidade entre Tanganho e o Capitão Tavares.

Tratava-se, no entanto, de concorrentes que se respeitavam, de tal forma que o vencedor oferece o troféu ao rival.

O enorme sucesso da prova leva o DN a organizar, dois anos volvidos, a primeira Volta a Portugal em Bicicleta. Sobre esta iniciativa, refere o jornal que eram 42 os ciclistas à partida e “todos levavam os seus bidons de folha, com água ou cerveja, amarrados aos guiadores”.

No ano do Circuito Hípico nasce a Gazeta das Caldas.

Nas Comemorações do Centenário, com o Alto Patrocínio do Senhor Presidente da República, a Gazeta das Caldas celebra a vitória de José Tanganho com uma exposição no CCC (Centro Cultural e de Congressos) e a reconstituição do Circuito pelo bisneto do vencedor, Pedro Bernardo.

Membro da Comissão do Centenário da Gazeta das Caldas

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