Há um contrato social que sustenta a nossa vida em comunidade: cedemos parte da nossa liberdade e depositamos a nossa segurança nas mãos do Estado e das suas instituições. Crescemos a acreditar que um militar da GNR é sinal de autoridade segura e que um "soldado da paz" é símbolo do altruísmo e heroísmo. Por isso, as notícias recentes sobre comportamentos vergonhosamente abusivos de membros destas valiosas corporações, atingem-nos a todos como um violento soco no estômago. Ainda que com a devida reserva por não termos conhecimento dos detalhes e sempre com a divisa inultrapassável de que numa sociedade democrática só é culpado quem tem sentença transitada em julgado, mesmo em abstrato, as duas situações de abuso publicamente divulgadas são muito preocupantes. Os casos recentes que envolvem militares da GNR e elementos dos Bombeiros Voluntários dão-nos a todos muito em que pensar, mesmo que se venha a revelar que se trataram de ocorrências isoladas. É que as mesmas podem, tragicamente, ser o barómetro de uma sociedade doente e de instituições que falharam na sua missão mais primordial: proteger e cuidar dos outros.No primeiro caso, a suspeita de que militares da GNR estariam a auxiliar redes de tráfico humano e a lucrar com a escravatura de imigrantes é de uma vilania atroz. Estes imigrantes, na maior parte dos casos, invisíveis aos olhos da generalidade dos portugueses, procuram refúgio e trabalho no nosso país. O trabalho que ninguém quer fazer. Em vez de encontrarem garantes do respeito pelos direitos humanos, encontraram facilitadores dos abusos de que são alvo. Quando quem tem o poder de autoridade se alia ao explorador e abusador, há muita coisa que está errada na corporação em causa e na sociedade portuguesa em geral, da qual a corporação não deixa de ser um espelho. A factualidade recentemente revelada, a confirmar-se como verdadeira, ainda que em parte, revela um lastro estrutural de indiferença e impunidade que mancha a honra da força de segurança em causa e de todos os militares que diariamente cumprem com brio e de forma honrada e com zelo, quantas vezes enfrentando perigos de toda a sorte, os deveres que juraram cumprir. No que respeita à ocorrência na corporação de Bombeiros, o horror muda de forma, mas mantém a essência do abuso de poder. A denúncia de abusos sexuais perpetrados por bombeiros contra um jovem colega, sob pretexto de se tratar de uma "praxe", representa um rude golpe na aura dos “Soldados da Paz”. Os quartéis de bombeiros são, no imaginário coletivo, santuários de camaradagem e de heróis corajosos. Saber que, dentro de quartéis são cometidas tamanhas atrocidades por “irmãos de armas”, revela uma normalização da violência e do abuso, sob o inadmissível disfarce da tradição ou da brincadeira “sem graça”. O que une estes dois casos? O abuso da autoridade e a traição da confiança. Em ambos os casos, as vítimas encontravam-se numa posição de vulnerabilidade extrema, seja pela precariedade migratória, seja pela hierarquia interna, a qual foi utilizada pelos agressores para garantir o silêncio e a submissão ante o exercício abusivo da violação repugnante dos direitos à dignidade e integridade física e psicológica das vítimas. Os casos funcionam como biópsias de um tecido social que pode estar em necrose. E podem ser reveladores de que a seleção daqueles profissionais e o seu acompanhamento é deficiente. A justiça que se vier a fazer (condenando e/ou absolvendo), por si só, não cura a doença social. É necessário questionar: como é que numa sociedade como a nossa com mais de 50 anos de vivência em democracia, atingiu um grau de desumanização tão elevado? Uma sociedade onde os militares exploram escravos e bombeiros abusam dos seus, é uma sociedade que perdeu o norte ético. Não podemos cair no erro de culpar as corporações pelos comportamentos indignos de alguns, mas também não podemos aceitar a teoria das "maçãs podres" sem questionar o cesto que as acolhe. É urgente reformar, vigiar e, acima de tudo, humanizar quem nos serve, mas também quem é servido. O egoísmo e o egocentrismo atingiram-nos individualmente e enquanto comunidade. Fazemos das liberdades próprias, a legitimação dos abusos que cometemos relativamente a terceiros. É tempo de pararmos e de retomarmos a ética e a solidariedade que em tempos idos, nos trouxeram até aqui. Porque se assim não for, não acabará bem! Está nas mãos de todos, diariamente, nos mais pequenos gestos quotidianos. Respeitarmos os outros e sermos solidários com o próximo. Advogado e sócio fundador da ATMJ - Sociedade de Advogados