Carta aos donos da Global Media (sejam lá quem forem)

Há quem diga que a luta dos trabalhadores “espanta o dinheiro”. Há quem diga que os jornalistas estão obsoletos. Há, parece, quem ache que pode comprar um grupo de media e não pagar salários, nem dizer quem é. Há de tudo, e há também estarmos fartos.
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Na quarta-feira 10 de janeiro, fizemos a primeira greve geral na Global Media (GMG). A adesão foi quase total. Antes da meia-noite, abri o back office do DN e comovi-me com a primeira notícia que li, a anunciar que o site do jornal iria ficar parado até quinta (nunca tinha vivido uma greve geral nos títulos em que trabalhei; já fiz greve mas foi algo bastante solitário, cuja única consequência, além da auto-satisfação, foi poupar à empresa um dia de salário). Até àquele momento, não sabíamos - nunca se sabe quem faz de facto greve até a greve começar - se o site ia parar e o jornal em papel não ia sair. 

E parou, e não saiu. Nenhum site da GMG mexeu na quarta, nenhum jornal em papel da GMG saiu na quinta. Aliás não teriam saído logo na quarta, devido à greve dos trabalhadores da gráfica do grupo, a Naveprinter, se a administração não tivesse antecipado a adesão e mandado imprimir noutra gráfica - facto que demonstra que pelo menos para isso houve dinheiro. 

É difícil, para quem nunca passou por algo assim, traduzir o sentimento de união, de irmandade e até, estranhamente, de alegria (se se pode chamar alegria àquela exaltação e catarse) que vivemos no dia 10 de janeiro, na concentração de protesto em Lisboa junto às instalações do DN, TSF e Dinheiro Vivo (no Porto terá sido igual, com o JN e O Jogo). Foi extraordinário ver tanta gente, entre amigos, cronistas atuais e antigos, ex-camaradas de redação - houve quem tirasse um dia de férias para vir abraçar-nos - mais aqueles a quem chamamos “fontes” e os que costumamos denominar de “notáveis” e “personalidades”, ali connosco, a somar a todos os jornalistas de outros grupos e empresas, alguns dos quais também se nos juntaram, que quiseram parar uma hora em solidariedade. Sentimo-nos tão menos sós - obrigada.   

Há, claro, quem diga “para que serve isso, fica tudo na mesma, continuam a não receber e a empresa perde mais dinheiro e a chance de receberem diminui”. Disseram-mo no Twitter. Também há quem diga que a luta dos trabalhadores “espanta o dinheiro” (tudo caladinho, quietinho e virado para a frente é que “o dinheiro” gosta, pois). E, claro, apareceu gente a falar de Inteligência Artificial e de como no curto prazo os jornalistas serão por ela substituídos, que estamos condenados à obsolescência. Não é de agora que há pessoas que desconhecem a noção de jornalismo (além de inteligência, artificial ou outra); é normal. Também não é de agora que há pessoas para quem “trabalhadores” é uma noção anacrónica, quanto mais “luta”.

Há de tudo. E há, cinco dias depois, no momento em que escrevo este texto, a redação do DN continuar a trabalhar sem salário. Como a do JN, a do Dinheiro Vivo, a de O Jogo, os repórteres da Global Imagem. As redações e muitos outros trabalhadores não jornalistas do Grupo Global Media - até agora, só os dos Açores, incluindo os jornalistas do Açoriano Oriental (a 9 de janeiro), e os da TSF (a 12) receberam, com atraso, os salários de dezembro. 

Quanto aos que trabalham para o grupo “à peça” ou com avença, a recibos verdes ou mediante fatura, alguns só esta segunda receberam o correspondente a outubro, quando deveriam receber novembro - com a agravante de que têm de entregar adiantado ao Estado o correspondente a impostos e segurança social de pagamentos que não existiram e podem nunca existir.

Ninguém (que se saiba) recebeu subsídio de Natal, que tinha de ser pago até 15 de dezembro, e que a comissão executiva da GMG - José Paulo Fafe (presidente), Filipe Nascimento, Paulo Lima de Carvalho e Marco Galinha (saíram, de acordo com o noticiado, três outros membros nos últimos dias) - decidiu unilateral e ilegalmente pagar em “duodécimos” ao longo de 2024. 

Tudo isto, pensa quem me lê, ou uma parte dos que me leem, já se sabe - para quê repetir? É que, precisamente, é preciso repetir. Porque a cada dia que passa há pessoas cada vez mais aflitas para pagar contas, a cada dia que passa há profissionais cada vez mais desapossados, a sentirem cada vez mais que o seu trabalho, por mais suor que lhe dediquem, por mais horas e empenho e ganas, não tem valor - valor pecuniário, daquele com que se paga eletricidade, arroz, renda da casa - e que tudo é possível. 

Tudo é possível, incluindo mandar-se ao charco, em poucas semanas, o prestígio de títulos de informação, como se fosse tudo uma brincadeira - como, nas palavras de Fernando Alves, o veterano da TSF e de Os Sinais que bateu com a porta aquando da suposta entrada dos supostos novos donos, putos a dar cabo de brinquedos.

Tudo é possível, sim. Mesmo esta coisa extraordinária que é um dos maiores grupos empresariais de media, num setor supostamente hiper-regulamentado e protegido pelas leis da República por essencial para a democracia, ser - dizem-nos - vendido a um fundo internacional que ninguém assume saber a quem pertence. 

Um fundo cujo representante, José Paulo Fafe, diz no parlamento não ter sequer a maioria da GMG e não “meter dinheiro para pagar salários, só para reestruturação” (reestruturação é, sabemos, o nome que a contemporaneidade dá a despedimentos), quando horas antes o ainda presidente do conselho de administração e ex-presidente da CE da GMG, Marco Galinha, afirmava no mesmo local que tinha vendido a sua quota maioritária ao fundo - cujos donos, reiterou, desconhece - e que tem sido ele a adiantar o dinheiro para os salários. 

Ficámos assim com esta dúvida espantosa: quem raio é suposto pagar os salários? Quem raio compra um grupo com, dizem-nos, mais de 500 trabalhadores (porque nem quantos somos ao todo sabemos, como nada sabemos das contas da GMG, e não é por falta de lhes pedir acesso) e não conta pagar salários? Que esquema é este, e quem o delineou?   

Com quase 40 anos no jornalismo, dos quais quase 20 de DN - entrei para esta redação em abril de 2004 -, habituei-me mal: sempre achei que quanto menos soubesse dos donos dos títulos em que trabalhei, e até de quem os representava, melhor. Queria dizer que não se metiam no meu trabalho e que nem sequer me passava pela cabeça, ao interessar-me por um assunto, ponderar se os ia ou não chatear. 

Há limites para isso - é onde estamos. No momento em que todos os trabalhadores da GMG com salário em atraso há 15 dias podem já notificar a empresa de que querem suspender o contrato - possibilidade legal que lhes permite pedir o subsídio de desemprego mantendo o vínculo à empresa - o que, a suceder, pararia os jornais. Nenhum dos trabalhadores quer isso - ninguém aqui quer a morte no DN - mas não é admissível continuar a trabalhar sem receber. 

Não chega dizerem-nos que estão solidários connosco, ou que lamentam profundamente, ou que estão a passar mal de aflição e a tentar muito não sei quê de transferências. E decerto não é a culparem-se uns aos outros que diluem a responsabilidade. Têm uma dívida connosco, paguem. E digam-nos quem é quem e ao que vem. É o mínimo.  

Nota: Ao contrário do que é afirmado, houve um jornal da GMG a sair na quinta-feira. Trata-se de O Açoriano Oriental, em cuja redação de nove jornalistas apenas dois fizeram greve. Pelo erro peço desculpa.  

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