Canções & humor 

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Por estes dias, o segundo filme protagonizado pelos Beatles, Help! (Socorro!), completou 60 anos. A estreia absoluta, em Londres, ocorreu a 29 de julho de 1965, tendo chegado a Nova Iorque duas semanas mais tarde, a 11 de agosto. Dir-se-ia que um pouco à maneira de algumas estratégias de marketing do presente, o lançamento do filme foi conjugado com o aparecimento do álbum homónimo (a 6 de agosto), embora não se trate, em sentido estrito, de uma banda sonora, já que metade das canções do álbum não surgem no filme. Era o quinto álbum de estúdio dos Beatles e o segundo dos seus filmes, tal como o primeiro, A Hard Day’s Night (estreado um ano antes), dirigido pelo americano Richard Lester. 

Com alguma inevitável ironia, podemos recordar que o grande sucesso cinematográfico desse mesmo ano, Música no Coração, realizado por Robert Wise, era também um filme indissociável das matérias musicais. Com uma diferença óbvia, mas que vale a pena sublinhar: se Música no Coração correspondia a uma sofisticada variação melodramática da tradição do musical de Hollywood (a par de My Fair Lady, estreado no ano anterior), Help! distinguia-se por uma dimensão genuinamente experimental, “imposta” pela sonoridade do quarteto de Liverpool. 

Imagem promocional de Help! (1965).
Imagem promocional de Help! (1965).

Daí que, por vezes, se considere o trabalho de Lester, em A Hard Day’s Night e Help!, como uma espécie de capítulo zero da história dos telediscos ou, mais especificamente, dos videoclips que a MTV viria a difundir e consagrar a partir da sua fundação, em 1981. Haverá as mais diversas razões para resistir a tal paralelismo (a começar pelas diferenças dos respectivos contextos de produção), mas é um facto que, com um misto invulgar de acuidade estética e talento narrativo, Lester compreendeu que as canções dos Beatles exigiam formas de encenação que já não podiam ser as que provinham das matrizes televisivas da época — sem esquecer que, curiosamente, as primeiras experiências profissionais de Lester tinham sido vividas na televisão, tanto nos EUA como no Reino Unido. 

De A Hard Day’s Night para Help!, assistimos mesmo a uma viragem estrutural - da televisão, precisamente, para o cinema. Assim, a intriga do primeiro filme pode ser resumida como uma colagem das atribulações enfrentadas por John, Paul, George e Ringo - tentando sobreviver às perseguições e à gritaria dos fãs (rapazes e raparigas) - num dia em que têm de cumprir um compromisso televisivo. No caso de Help!, o motor da história é a ameaça de uma seita de origem oriental que tenta transformar Ringo no seu objeto sacrificial... As confusões que se seguem são, de facto, “clips” cuja linguagem já não pertence ao espaço clássico de um estúdio de televisão. E tanto mais quanto, além da película a cores (A Hard Day’s Night é a preto e branco), a ação tira partido de uma grande variedade de cenários, incluindo Londres, os Alpes austríacos e as Bahamas. 

Há em tudo isto um humor bizarro, explorando alegremente as regras e os efeitos do mais primitivo burlesco (entenda-se: enraizado no cinema mudo). Afinal de contas, logo após Help!, em 1966, Lester dirigiu uma paródia totalmente burlesca aos filmes sobre a Roma antiga, então muito na moda (Cleópatra, com Elizabeth Taylor, era de 1963). Tinha o mesmo título do musical da Broadway em que se baseava - A Funny Thing Happened on the Way to the Forum (entre nós, Em Roma... Era Assim) - e acabou por ser o filme final de Buster Keaton, um dos génios do burlesco. 

É caso para dizer que, por vezes, a história se organiza de modo a harmonizar todas as suas aventuras e personagens. E também a sua música, já agora, uma vez que as canções dessa Roma varrida por um vento de comédia tinham assinatura do grande Stephen Sondheim. 

Jornalista

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