Opinião
09 novembro 2022 às 00h19

Campo de Ourique: um conto cento e dez por mês

Ser bairrista é bom. Mas, para tal, é preciso ser rigoroso e exigente na apreciação dos múltiplos critérios de avaliação.

Logicamente, todos preferem habitar em zona agradável. Todos gostam que o bairro de residência seja limpo, apresentável e atraente. Na dimensão urbana, tem de ser bem planeado e gerido. Igualmente, deve ter árvores, jardins muito cuidados, equipamentos sociais destinados a crianças e idosos, também. É bom que assim aconteça.

Mesmo, atendendo à saúde individual e da família, é importante a ligação afetiva estabelecida entre a pessoa e o apartamento onde se habita, que deve ter luz natural e receber raios solares. O respetivo prédio tem de estar devidamente conservado e implantado em quarteirão espaçoso e recheado de blocos, mas de dimensão humana.

Segurança nas ruas, imprescindível. Lugares de estacionamento de automóveis, indispensáveis.

Assim acontecia em Lisboa, precisamente, em Campo de Ourique. Eram os anos 50 e 60 do século passado. Ambiente, então, de encantar. Uma vaidade para quem aí morava. Rendas acessíveis, apenas para a classe média, visto que estavam limitadas pela "tabela" de um conto cento e dez escudos por mês para um apartamento com cozinha, casa de banho, sala e dois quartos.

Por isso, os andares com papéis brancos colados nos vidros das janelas que assinalavam estarem vazios e prontos para alugar eram visitados por jovens casais à procura de casa. Quase todos eram médicos, advogados, engenheiros ou professores. Profissões liberais, mas também empresários e empregados de escritório de grandes empresas.

As edificações, relativamente equilibradas em altura, preenchiam os arruamentos perpendiculares e paralelos ao redor do Jardim da Parada.

O Bairro foi sempre servido por abundantes transportes assegurados pela Companhia Carris, quer em autocarros quer em carros elétricos com percursos dos Prazeres até à Baixa ou pela Ferreira Borges a caminho das Amoreiras.

O grande mercado municipal da Coelho da Rocha garantia o abastecimento regular de alimentos, frescos, de qualidade, a par das lojas de mercearias finas, quase sempre familiares. As cafetarias principais mais frequentadas eram a Tentadora, a Aloma e a Értilas. Entre os restaurantes mais procurados, estavam o Canas, o Gigante, o Sevilhana e o Velha Goa.

Os cinéfilos iam ao Europa ou ao Paris, na Domingos Sequeira. A Concorrente e a Volga como livrarias e papelarias eram muito apreciadas.

Ali residiram intelectuais, escritores e políticos que marcaram a História da Cultura Portuguesa: Fernando Pessoa e os seus heterónimos (1888-1935), Bento de Jesus Caraça (1901-1948), António Ferreira de Macedo (1887-1959), Rómulo de Carvalho e António Gedeão (1906-1997), Joel Serrão (1919-2008), Jorge Borges de Macedo (1921-1996), Fernando Assis Pacheco (1937-1995), Luís Sttau Monteiro (1926-1993), Jorge Sampaio (1939-2021)...

Por outro lado, os trabalhadores e operários, viviam nas zonas mais periféricas do Bairro, como a Travessa do Bahuto, Fonte Santa, Meia-Laranja, Casal Ventoso, Maria Pia...

Nessa época, a pobreza era chocante. Era o tempo dos meninos pés-descalços e dos caixotes de lixo, logo pela manhã, remexidos por quem andava ao trapo com um grande saco ao ombro, à procura de restos e de papel para vender.

Moral da história:

A vida urbana pode ser compensadora, se...

Ex-diretor-geral da Saúde

franciscogeorge@icloud.com