Dois dias após a queda de Cabul, a China levou a cabo um exercício militar de grande envergadura às portas de Taiwan. Tratou-se da simulação de um ataque, usando uma combinação de meios aéreos, navais e de interferência eletrónica. Taipei diz que o seu espaço de defesa foi repetidamente violado pelos caças chineses. E o exercício foi visto como um ensaio geral do que se poderá seguir..É evidente que esta operação militar foi planeada há algum tempo, como parte de um crescendo nos últimos meses. Mas a sua intensidade, nível de penetração e de intimidação parecem ter sido aprofundados, no seguimento do que acabara de acontecer no Afeganistão..Os líderes chineses sabem que a administração americana está totalmente concentrada no rescaldo do caos de Cabul. O Extremo Oriente não cabe no radar político do momento em Washington. Mais importante ainda, a nova realidade internacional - a imagem de derrota da grande potência - abria a oportunidade de tornar o exercício mais ofensivo, num novo teste à determinação americana no que respeita à proteção da soberania de Taiwan..Vistos de Beijing, os acontecimentos no Afeganistão indicam que a opinião pública americana está menos disposta a comprometer-se em guerras que não são suas, em terras longínquas, difíceis de localizar no mapa e de entender culturalmente. Xi Jinping e os seus ficaram agora mais convencidos de que os americanos vergarão de novo perante factos consumados. Neste caso, perante a realidade que resultaria da ocupação pela força de Taiwan. Nessa visão, Washington reagiria com muito ruído, mas de facto hesitaria até finalmente abandonar a hipótese de uma resposta militar..Pode ser um erro de apreciação por parte dos chineses. Mas a verdade é que os americanos acabam de projetar uma imagem que parece confirmar a opção por uma política de primazia absoluta dos interesses nacionais e que as alianças com os outros só duram enquanto durarem. Isto é, enquanto servirem os interesses dos EUA. Essa imagem prejudica, entre outros, a NATO. Para além de dar mais argumentos aos que dizem que a Aliança Atlântica é apenas um trem de países a reboque dos EUA, poderá fazer crer a líderes como Vladimir Putin que não sofrerão consequências de maior se pisarem certas linhas vermelhas e ameaçarem a segurança de países europeus. Prejudica igualmente a luta pelo primado dos direitos e princípios em matéria política. Manter os direitos humanos na lista prioritária da agenda internacional, quando se abandonou a população do Afeganistão ao primitivismo dos talibãs, é agora mais difícil..Embora ainda seja cedo para avaliar todas as consequências do fim trágico de vinte anos de intervenção no Afeganistão, a evidência é que mudou o xadrez geopolítico naquela parte do globo. Temos agora, lado a lado, três Estados fanáticos, cada um à sua maneira. Um, o Paquistão, com capacidade nuclear. Outro, o Irão, com potencial nuclear. E ambos na órbita da China. O terceiro, o Afeganistão, é um barril de pólvora em termos domésticos, uma fonte de instabilidade regional e um possível viveiro de movimentos terroristas internacionais. Para além dos Estados, existem as pessoas, que sofrem os efeitos do fanatismo, das opressões, da corrupção e que vivem um quotidiano de miséria e medo..A União Europeia não pode olhar para essas populações apenas pelo prisma das migrações descontroladas. Infelizmente, foi essa a preocupação que orientou as intervenções de Emmanuel Macron e de Josep Borrell, entre outros, quando falaram publicamente sobre o novo Afeganistão. Foi como se só vissem hordas de migrantes afegãos a caminho da Europa. Num momento grave, que exige uma estratégia diplomática inovadora e uma resposta humanitária adequada, é inaceitável que se reduza o problema afegão a uma possível crise migratória. A UE tem de saber retirar as lições que se impõem em matéria de segurança, de participação na resolução de conflitos em países terceiros e de autonomia face às grandes potências. E deve procurar definir um quadro político que guie a sua maneira de lidar com regimes retrógrados, hostis e desumanos. Como, por exemplo, com os barbudos de Cabul..Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral adjunto da ONU